Um passeio pelo Galeão Fantasma de Amando de Ossorio

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Desde os primeiros navegantes, na inspiração de Camões e outros poetas, é possível imaginar o quanto pode ser solitário e assustador um passeio de barco, tendo como testemunhas silenciosas apenas o céu e o mar. Além da solidão produzir monstros, as lendas envolvendo embarcações desaparecidas ou encontradas sem tripulantes e as histórias de pescadores contribuem para alimentar esse subgênero de poucos bons exemplares. Quando a memória traz à tona no novo milênio apenas Navio Fantasma (2002), Triângulo do Medo (2009) e a franquia Piratas do Caribe, é porque o estilo não está sendo muito bem retratado. É possível resgatar outras navegações malditas nas outras décadas com Satan’s Triangle (1975), Death Ship (1980) e Leviathan (1989) – não vi Ghost Ship, de 1952, de Vernon Sewell.

Apesar das qualidades apresentadas em boa parte das produções mencionadas, não lembro de ter visto um filme mais atmosférico do que O Galeão Fantasma (El Buque maldito, 1974), terceiro filme da franquia dos mortos cegos de Amando de Ossorio. Quando me refiro à atmosfera, é a exaltação ao ambiente fantasmagórico de uma tripulação de esqueletos secos, com roupas negras em farrapos, sob uma névoa fria e densa, rumando lentamente em direção às vítimas. E, diferente dos outros filmes que permitiam tentativas de fuga, ainda que os vilões muitas vezes usassem cavalos mortos, a ideia de estar num espaço curto em pleno oceano com esses monstros amplia a claustrofobia e a sensação de impotência. Infelizmente, os conceitos muitas vezes funcionam melhor do que a concepção, e o filme não vai além das boas intenções.

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Antes de falar sobre O Galeão Fantasma, é importante apresentar o responsável pela pérola: Amando de Ossorio! Nascido em 6 de abril de 1918, na Espanha, Ossorio estudou pintura e fotografia, e trabalhou como jornalista e produtor de dramas de rádio. Essa mistura permitiu uma relação direta com seus filmes, embora seu primeiro contato com o cinema seja como assistente de direção nos anos 40. Seu primeiro trabalho na direção de longas foi com o drama La bandera negra, de 1956. A partir daí fez alguns westerns, dramas e comédias até embarcar no gênero que o tornaria popular, o horror, com o vampírico Malenka, de 1969, estrelado pela recém-falecida Anita Ekberg (de A Freira Assassina, 1978).

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Apaixonado pelas lendas envolvendo os cavaleiros templários – tanto que lhe rendeu algumas belíssimas pinturas -, Ossorio concebeu aquela que se tornaria sua obra mais popular da década de 70, A Noite do Terror Cego (La noche del terror ciego, 1972). Apesar da influência direta com o magistral A Noite dos Mortos-Vivos (68), de George A.Romero, Ossorio sempre dizia que não se inspirou no filme, como o próprio afirma na entrevista do DVD da Versátil. Ora, qualquer filme que envolvesse claustrofobia seria relacionado ao trabalho de Romero, mesmo que fosse único, não? Mesmo com a negativa, é evidente a inspiração, tanto que os mortos-vivos mordem suas vítimas.

A Noite do Terror Cego é fantástico realmente! Mesmo com as limitações orçamentárias, o longa é envolvente, claustrofóbico e, sim, assustador, principalmente pela concepção criativa dos vilões, em suas vestimentas em farrapos, e a estrutura óssea envelhecida, como se fossem a representação da Morte. A cena em que os mortos saem de suas tumbas, na cidade templária em ruínas, é primorosa, tanto que o cineasta a utilizaria inteiramente, cerca de 10 minutos, nas “continuaçõesO Retorno dos Mortos Vivos, de 1973, e no último filme da franquia, A Noite das Gaivotas, de 75. As aspas na palavra “continuações” se devem ao fato dos filmes, tal qual Romero, não possuírem uma sequência de acontecimentos, incluindo informações que se contradizem de uma obra para outra.

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O Retorno dos Mortos-Vivos (El ataque de los muertos sin ojos) é inferior ao primeiro, embora tenha suas qualidades e sua crítica política na pele do prefeito Duncan (Fernando Sancho). Além do orçamento reduzido, o que resultou na colagem de cenas do primeiro, o longa também alterou a mitologia dos templários ao mudar o motivo pelo qual eles eram cegos (corvos no primeiro; cegados pela população para que a alma não retornasse no segundo). Neste, os mortos já não mordem suas vítimas, e utilizam espadas para matar a população da cidade, também alterada. Curiosamente o ator Francisco Sanz participa dos dois filmes, e também de outro filme de zumbis do período, Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos aka Zumbi 3, de 1974, de Jorge Grau. Com um grande número de vítimas, a continuação perde pontos pelo final feliz, diferente do tom apocalíptico do original!

Enquanto ansiava pela estreia de seu segundo filme, Ossorio dirigiu dois documentários e o horror Las garras de Lorelei, de 74, com boa avaliação no IMDB, referente ao ataque de uma criatura. Logo em seguida, viria o tal O Galeão Fantasma (El Buque maldito), a terceira parte da série, e a mais fraca de sua mitologia envolvendo os mortos templários. Há quem afirme que o longa sofra da maldição das terceiras partes, como aconteceu com outros exemplares ruins com a marca: Sexta-Feira 13 – Parte 3, A Hora do Pesadelo 3, Alien 3, Tubarão 3, Pânico 3…com exceção para Halloween 3, que, embora não traga Michael Myers, é uma produção interessante; Army of the Dead (o terceiro da série Evil Dead) e até O Exorcista 3 (que consertou as bobagens do segundo filme). Contudo, na verdade, os problemas maiores de O Galeão Fantasma são técnicos, com ênfase nas terríveis miniaturas que o próprio Ossorio assume que ficaram ruins.

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Com a intenção de anunciar sua nova linha de barcos, o rico empresário Howard Tucker (Jack Taylor, de várias produções de horror, de Conde Drácula, 1970, a Toque de Mestre, 2013) contrata duas modelos, uma delas é Kathy (Blanca Estrada, de O Mistério da Ilha dos Monstros, 1981), para fingirem que estão à deriva no mar e que sobreviveram graças à lancha da empresa. Enquanto estão “perdidas” no oceano sem fim, o barco das meninas é envolto em névoas até encontrar uma grande embarcação, o tal galeão do título. Assim que embarcam, logo as meninas acabam por conhecer as lendas sobre os templários e sua voracidade – pois é, aqui eles devoram os vivos!

A colega de quarto de Kathy, Noemi (Bárbara Rey), resolve investigar o desaparecimento, questionando aquela que contratou sua amiga, Lilian (Maria Perschy, de Exorcismo, 1975), com ameaças de que irá chamar a polícia. Ela é tão sequestrada pelo empresário e por Lilian, e acaba tendo que participar obrigatoriamente de uma expedição ao local, onde, segundo o Professor Grüber (Carlos Lemos), existe a tal embarcação fantasma e diversas lendas envolvendo os templários. Não demorará muito para o grupo encontrar as névoas que conduzem os incautos para uma dimensão paralela (!!!), onde navega o Galeão e sua tripulação de esqueletos.

Esse enredo nonsense, em que até um rico empresário participa de expedições de exploração, será o ponto de partida para um trama claustrofóbica e atmosférica, porém infeliz em sua realização. Como o galeão é um barco com poucas possibilidades de ambientação, a narrativa é arrastada até o momento em que os templários erguem-se de suas caixas de madeira para fazer vítimas. Como Ossorio não pode contar com a volta dos mortos, saindo de suas tumbas, do primeiro filme, neste terceiro, ele teve que recriar o retorno, mas sem a mesma inspiração.

Há bons momentos no filme, o que o afasta de uma avaliação péssima, como a cena em que o grupo sobrevivente fica preso a um canto da embarcação enquanto os mortos se aproximam lentamente. E também vale uma menção à conclusão do longa, com similaridades ao original, sem aquele final feliz que na maioria da vezes estraga o resultado. Se o clima é interessante, os efeitos de miniatura, quando o galeão é visto completamente, são risíveis pela sua aparência de barquinho de brinquedo. Além disso, a mitologia dos templários não é bem explicada pelo professor, até mesmo a ideia de trazer um tesouro, transformando os vilões em piratas.

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O Galeão Fantasma não é repleto apenas de mortos cegos, mas de falhas, navegando nas águas turvas lentamente como a narrativa de Amando de Ossorio. Com o naufrágio da produção, o cineasta espanhol iria para a praia na concepção do último filme da franquia, A Noite das Gaivotas, resgatando a boa reputação dos cavaleiros e sepultando de vez qualquer possibilidade de retorno. Pelo menos, não pelas mãos do cineasta…

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Marcelo Milici

Professor e crítico de cinema há vinte anos, fundou o site Boca do Inferno, uma das principais referências do gênero fantástico no Brasil. Foi colunista do site Omelete, articulista da revista Amazing e jurado dos festivais Cinefantasy, Espantomania, SP Terror e do sarau da Casa das Rosas. Possui publicações em diversas antologias como “Terra Morta”, Arquivos do Mal”, “Galáxias Ocultas”, “A Hora Morta” e “Insanidade”, além de composições poéticas no livro “A Sociedade dos Poetas Vivos”. É um dos autores da enciclopédia “Medo de Palhaço”, lançado pela editora Évora.

2 thoughts on “Um passeio pelo Galeão Fantasma de Amando de Ossorio

  • 24/07/2016 em 15:06
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    Esse Death Ship (1980) eu assisti no fim dos anos 80 ou início dos 90, quando o meu tio gravou numa exibição feita do SBT; GOSTEI MUITO na época e me deu muito medo (eu tinha 10 anos aproximadamente), acredito que merece uma resenha aqui no BOCA, ou um especial sobre navios assombrados; concordo com você Milici, dentro de um navio e que está no meio do oceano, este é um verdadeiro ambiente claustrofóbico, o que dá medo só de pensar no assunto.

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  • 24/07/2016 em 11:50
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    Bom, Marcelo, como eu disse no post anterior, esse é o meu favorito da série.
    A melhor cena é aquele dos mortos ressurgindo do fundo do mar.
    Bom, é a minha opinião.
    Um abraço!

    Resposta

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