Tabula Rasa
Original:Tabula Rasa
Ano:2017•País:Bélgica Direção:Kaat Beels, Jonas Govaerts Roteiro:Veerle Baetens, Christophe Dirickx, Malin-Sarah Gozin Produção:Frank Van Passel Elenco:Veerle Baetens, Stijn Van Opstal, Jeroen Perceval, Gene Bervoets, Natali Broods, Cécile Enthoven, Ruth Beeckmans, Hilde Van Mieghem, Peter Van den Begin, Lynn Van Royen |
Na época da Roma antiga, tábuas raspadas (tabula rasa, em latim), cobertas com uma fina cera branca, eram usadas para a escrita. Os textos tinham suas letras marcadas com punhais, tendo a possibilidade de limpar os cortes para usar o objeto de comunicação novamente. Figurativamente, a expressão, com seu sentido “folha de papel em branco“, foi usada por Aristóteles para indicar a consciência que precisa ser preenchida, passando por outros filósofos até o ensaio de John Locke (1632–1704), que via a mente como uma página virgem e que a experiência funcionaria como um estilete sobre a cera. Essa é a condição psicológica de Annemie D’Haeze (Veerle Baetens), que, devido a um trauma do passado, não consegue mais estabelecer novas memórias, resultando em um pesadelo a ser construído na intrigante e belíssima série da Netflix Tabula Rasa, desenvolvida pela protagonista em parceria de Malin-Sarah Gozin.
Ao lado da genial Dark, a série belga entrou definitivamente para a lista dos melhores produtos lançados pelo sistema de streaming. Enquanto há quem exalte Stranger Things e La Casa de Papel, essas duas produções fazem a diferença ao apresentar enredos tensos, repletos de reviravoltas e que permitem importantes reflexões sobre as relações humanas. Embora possuam contextos diferentes, ambas se destacam pelo cuidado técnico excepcional, elenco bem escolhido, com cada detalhe tendo a sua importância na construção de tramas envolventes e divertidas.
Tabula Rasa apresenta o drama de uma mulher que sofre de amnésia retrógrada, não conseguindo fixar nenhuma nova lembrança em seu cérebro. Ela adquiriu essa condição após um grave acidente de carro, um fato que ela mesma não entende como aconteceu. Assim, a série acompanha a protagonista em dois momentos de sua vida: logo após o acidente, quando ela descobre o problema, e alguns meses depois, internada em um hospício depois de perder o controle sobre si. Para auxiliá-la na montagem dessa quebra-cabeça, Annemie utiliza um caderno de desenhos, completando com informações e imagens que considera relevantes. Logo no episódio inicial, nos dias atuais, ela recebe a visita do Inspetor Jacques Wolkers (Gene Bervoets), que a indica como responsável pelo sumiço de uma pessoa, Thomas De Geest (Jeroen Perceval), por ter sido a última pessoa a vê-lo.
Ela também tem a ajuda de familiares, como o marido Benoit (Stijn Van Opstal), sua mãe Rita (Hilde Van Mieghem) e a irmã Nikki (Lynn Van Royen), além do paciente piromaníaco Vronsky (Peter Van den Begin) e da psicóloga Mommaerts (Natali Broods). No passado recente, antes de ser internada, na convivência às vezes conturbada com a filha Romy (Cécile Enthoven) na casa de sua mãe – uma vez que a dela foi destruída em um incêndio -, ela começa a ter a sensação de que o local é assombrado, devido a visões estranhas e acontecimentos misteriosos. Tudo faz parte de um mesmo labirinto de memórias e que ela precisa entender as conexões para encontrar a saída. Mas, como descobrir a verdade, se as pessoas de sua convivência parecem criar situações contraditórias para confundi-la ainda mais?
O que abrilhanta o conteúdo são as boas ideias do enredo de Kaat Beels e Jonas Govaerts. Tendo consciência da defasagem psicológica da protagonista, a série procura fazer o mesmo com o espectador, enganando-o através dos olhos e da lembrança enfraquecida de Annemie. Assim, a cada episódio, surpresas são lançadas na tela tanto para ela quanto para o público, com cada informação funcionando como uma peça desse intrigante quebra-cabeça. E cada reviravolta contribui para o crescimento da empatia pela protagonista e do interesse pela série, que jamais permite que alguém consiga antecipar muitos dos seus mistérios.
Uma dessas incríveis ideias envolve o uso da areia vermelha como símbolo da memória que não se estabelece em Annemie. Cada vez que a personagem está em vias de esquecer algo – ou realmente acabara de perder alguma informação – ela é atormentada pelas areias, seja na cama ao acordar ou em momentos importantes como na sequência final, quando ela foge de uma tempestade para que algo importante não seja perdido. Esse efeito é usado adequadamente durante os 9 episódios da série, até mesmo no letreiro que apresenta um dado que a personagem já perdeu ou na excelente abertura.
Personagens estranhos como o que observa tudo, protegido com um capuz, aumentam as dúvidas, levando o espectador a crer que alguém não quer que ela se lembre de alguma coisa. Nomes e apelidos, imagens que se misturam e a comunicação de seus conhecidos contribuem para o pesadelo de Annemie. Assim, a série é completada com momentos de terror sobrenatural e episódios bem angustiantes como o da festa das máscaras no Halloween (no passado) dialogando com uma terapia de expressão de sentimentos (no presente). Tudo funciona bem, incluindo a caracterização dos envolvidos na sequência e a relação estabelecida com o Mito de Teseu, perdido no labirinto do Minotauro.
Com tantos acertos, a série só não adquire nota máxima pelo episódio final. Não é pela grande surpresa apresentada mas o modo como as informações surgem didaticamente, como que insultando a memória do próprio espectador. Tudo o que fluiu bem, entre cenas do passado e do presente, se dilui com uma narrativa isolada, sem a visão da protagonista, servindo apenas para que o público entenda como tais situações aconteceram. Não precisava. Seus nove episódios já foram suficientemente marcantes para afastar qualquer areia vermelha que possa apagar seu conteúdo.
Série excelente, grande surpresa! Ótimo enredo, com ótimas interpretações. A narrativa prende o interesse do início ao fim, oferecendo ao espectador fragmentos de memórias que ajudam a montar o enigma junto com a protagonista. Ao mesmo tempo não se sabe se são lembranças reais e se há conexão entre elas, ou se é a mente de Mie pregando peças e preenchendo as lacunas com fantasia ou simplesmente misturando sem nexo os fatos, deixando-nos tão confusos quanto ela, mas de uma maneira deliciosa e instigante.
Interessante o uso da cor vermelha e de pistas deixadas nas conversas dos personagens e que voltam à memória vários episódios depois, quando as peças vão se encaixando, como em uma passagem sobre o sótão, por exemplo.
O que gostei na série é não ser muito previsível, embora o comportamento de duas pessoas em especial já demonstre que elas têm segredos. Uma delas rapidamente cheguei à conclusão acertada, a outra, no entanto, somente fui saber suas intenções e identidade no último episódio, embora já suspeitasse das atitudes e do comportamento atípico para seu papel.
Como já dito na crítica, o episódio final destoa totalmente do restante e é irritantemente didático e clichê. Embora não esperado na trama, segue a cartilha da motivação já explorada exaustivamente em outras produções. Final “balde de água fria”, apressado pelo excesso de informação apresentada, conflitando com as pistas homeopaticamente deixadas até então, além do enredo novelesco (do tipo mexicano…). Por mim poderia ter sido concluída tranquilamente no nono episódio, que já seria bem satisfatório.
Apesar da decepção com o episódio final, recomendo muito a série, que se tornou uma das minhas preferidas.
Muita boa! Essa é pra quem gosta de suspense e com várias reviravoltas. Me lembrou um pouco os filmes de M. Night Shyamalan, como foi escrito acima, nos momentos da areia e a relação da Mie com a filha. Netflix mandando bem nos apresentando séries boas assim de outros países.