Morte no Nilo
Original:Death on the Nile
Ano:2022•País:EUA, UK Direção:Kenneth Branagh Roteiro:Michael Green, Agatha Christie Produção:Kenneth Branagh, Judy Hofflund, Ridley Scott, Kevin J. Walsh Elenco:Kenneth Branagh, Tom Bateman, Annette Bening, Russell Brand, Michael Rouse, Orlando Seale, Susannah Fielding, Adam Garcia, Letitia Wright, Sophie Okonedo, Emma Mackey, Armie Hammer, Gal Gadot, Jennifer Saunders |
Agatha Christie foi uma das mentes mais criativas da literatura no século XX. Soube construir mistérios e tramas de assassinatos com personagens profundos e determinantes para o sucesso de suas propostas investigativas. Um destes, sem dúvida, foi o detetive belga Hercule Poirot, com uma aparência simplória, muitas vezes passível de promover risos pela excentricidade, mas que se mostrou especialista na solução de crimes em diversas partes do mundo. Pouco se sabe sobre seu passado, como ele construiu sua habilidade sagaz e veio a se tornar reconhecido pelo modo como conecta situações a partir do que ouve e observa. E tal característica já é ofendida no prólogo de Morte no Nilo (Death on the Nile, 2022), de Kenneth Branagh, quando o personagem é visto em 1914, nos primórdios da Primeira Guerra Mundial, como um combatente sugerindo uma estratégia para o avanço do exército belga. Não foi a única liberdade criativa do roteiro de Michael Green.
Nessa mesma sequência inicial, Poirot testemunha a morte de seu capitão, já apresentado com um vasto bigode. O acidente desfigura seu rosto (!!), e ele recebe a sugestão de sua amada (!!) Katherine (Susannah Fielding) de deixar o bigode crescer, o que poderia esconder suas cicatrizes. Isto é, aquele bigode pontiagudo nada tem a ver com a composição de um personagem excêntrico, mas pela vaidade – e pensar que Poirot era sempre visto nas adaptações com roupas coloridas e até bermudas, provavelmente como elemento que auxilia na baixa expectativa de seus suspeitos. E mais: Kenneth Branagh construiu sua história a partir do sentimento mais profundo e perigoso, o Amor: em 78, o personagem citava Molière: “A grande ambição das mulheres é inspirar o amor.” e ainda brincava com o fraco francês de seu parceiro na confusão entre faim (fome) e femme (mulher) para evidenciar seu receio contra uma ameaça feminina. Em tempo: na literatura de Christie, ele só demonstrou interesse pela Condessa Vera Rossakoff, que aparece apenas em um romance e dois contos.
Assim, depois desse começo um tanto tortuoso, a trama salta para 1937, com a chegada de Poirot a uma boate, atraindo olhares por sua competência investigativa. No ambiente, ele curte a apresentação da cantora de jazz Salomé Otterbourne (Sophie Okonedo) – a personagem deixou de ser uma escritora nesta adaptação, assim como Rosalie (Letitia Wright) passou a ser sua sobrinha e agente -, enquanto nota o momento em que a socialite Jacqueline “Jackie” de Bellefort (Emma Mackey) apresenta seu noivo Simon Doyle (Armie Hammer) para a amiga Linnet Ridgeway (Gal Gadot), pensando em conseguir um emprego para ele. Como acontece na obra, Linnet e Simon se encantam um pelo outro, para depois anunciar o casamento.
Semanas depois, em férias no Egito, Poirot reencontra o amigo Bouc (Tom Bateman), que apareceu também em O Assassinato no Expresso do Oriente (2017), embora não exista na literatura, servindo como substituto do Coronel Race. O rapaz empina pipa nas pirâmides, sendo observado e retratado em um quadro por sua mãe mal humorada Euphemia (Annette Bening). Todos já sabem do casamento de Linnet e Simon, assim como a Lua de Mel no local, com a observação constante de Jackie – desta vez não tão irritante quanto o personagem de Mia Farrow na versão de 78. Mais pessoas se apresentam, tanto para Poirot quanto para o espectador como a empregada de Linnet, Louise Bourget (Rose Leslie); seu primo Andrew Katchadourian (Ali Fazal); a madrinha de casamento Marie Van Schuyler (Jennifer Saunders) e sua enfermeira, Sra. Bowers (Dawn French), além do médico e ex-noivo da ricaça, Linus Windlesham (Russell Brand).
Todos, à exceção de Jackie, embarcam no SS Karnak, local onde Linnet deixa evidente para Poirot sua desconfiança, e lhe pede ajuda, assim como o personagem de Johnny Depp o fizera em Assassinato no Expresso do Oriente. Após um passeio pelos belíssimos templos de Abu Simbel, com a primeira ameaça à vida do casal, o grupo retorna à embarcação para prosseguir viagem, desta vez com a amargurada Jackie à bordo. Com os futuros suspeitos no ambiente claustrofóbico, uma sequência de eventos levam ao primeiro corpo, precisando mais uma vez da “massa cinzenta” do investigador na busca por pistas que permitirão a identificação do autor, mas não impedirão novos assassinatos.
Há muitas diferenças realmente em relação à obra e a primeira adaptação. Desde a não existência de um “J” escrito com sangue ao lado da primeira vítima, passando pela tinta vermelha que desaparece, até a própria autoria do roubo das joias. Nota-se que Kenneth Branagh quis dar uma agilidade maior ao personagem, criando até mesmo uma sequência de perseguição que não existe no livro, além do contexto racista que justifica uma possível vingança, relações entre personagens, local de descoberta do segundo corpo…Pode ser que os fãs mais fervorosos de Agatha Christie não consigam digerir muito bem essas alterações, mas que são compreensíveis para trazer uma maior dinâmica ao longa. Até mesmo as cenas aparentemente gratuitas de ataque de predadores fazem sentido como símbolo da cobiça, das diferenças sociais acentuadas.
Também favorecem uma boa avaliação a belíssima fotografia de Haris Zambarloukos, que dá um tom poético ao filme ao enaltecer as incríveis paisagens em quadros de cores intensas por onde atravessam as personagens, e as boas atuações, com destaque para Emma Mackey, em expressões que trazem um misto de raiva, inveja e interesse. Por outro lado, é passível de se sentir falta da edição inteligente da versão de 78, que mostrava as ações criminosas por diversos ângulos pelas diferentes autorias – e facilitava para o público entender como funciona a mente ágil de Poirot na esquematização das possibilidades. Mais uma vez, ele faz seu discurso de revelação de maneira interessante, apesar do apontamento ter sido um pouco prematuro.
Sem o tom de humor que carrega algumas adaptações de Agatha Christie, Morte no Nilo é bastante inferior ao Assassinato no Expresso do Oriente, tal qual acontecia entre as versões de 78 para a de 74. Contudo, desta vez o abismo é um pouco maior. Não chega ao ponto de tornar o filme descartável, até porque se trata de uma produção refinada, com um enredo que de qualquer modo irá surpreender, mesmo que se perceba algumas ideias que poderiam ter sido mantidas com mais identificação com o texto original.