Porco de Raça
Original: Ano:2021•País:Brasil Autor:Bruno Ribeiro•Editora: Darkside Books |
Protagonistas atípicos e anti-heróis sempre foram usados na literatura e no cinema para nos apresentar histórias que nos fazem pôr em cheque nossa própria moral, muitas vezes dúbia, ou usados de forma inteligente para complexar os personagens apresentados. Nesse livro, além de termos uma narrativa em primeira pessoa, sendo ela uma antítese, temos também outro elemento narrativo muito usado atualmente, que é uso de um cenário distópico para nos mostrar um contraste com os absurdos que vivemos. Aqui, ao contrário de muitos heróis, acompanhamos um personagem que se sente fracassado e vê esse fracasso no seu dia a dia em diversas profissões escolhidas que nunca vingam, na sua própria situação financeira que o coloca em posições não muito morais, e em suas divagações ao se comparar com seu irmão, visto por ele como “um negro sabonete”, que nada mais é que uma pessoa que apaga sua existência ou sua raça para se enquadrar no sistema vigente.
Nessa distopia, acompanhamos um jovem professor negro e revolucionário que se vê vítima de um sistema de estrutura racista tentando se enquadrar numa realidade que é contrária à sua própria existência. Como estamos numa narrativa de terror, logo nosso personagem é vítima de um rapto, e os seus algozes o jogam numa competição mortal onde ele é obrigado a usar uma máscara de porco e lutar contra indivíduos que tiveram o mesmo azar que o seu. Essas lutas são transmitidas ao vivo para apostadores muito ricos e também são abertas para um público seleto que brada por sangue, não fazendo inveja aos coliseus romanos.
Conforme nosso personagem começa a ganhar suas lutas, ganha com elas um certo status e um pseudônimo trazido aos brados pela plateia. “Porco Sucio, Porco Sucio”, que significa, no dicionário informal, um porco vagabundo ou um porco marginal. O desenvolvimento da história imprime então o paradoxo de um personagem que, ao tentar se libertar de suas próprias amarras, acaba se acostumando com suas algemas e entendendo-as como sinônimo de uma espécie distorcida de liberdade.
A escrita de Bruno Ribeiro nos choca por ser crua, sem palavras rebuscadas ou metáforas complexas. Como vemos os fatos pela ótica do “Porco Sucio”, não temos uma pausa moral ou um apego heroico pelo personagem; aqui acompanhamos alguém fragmentado, que sente inveja, raiva, sede por violência e um certo prazer por sangue. Há até uma parte da história em que ele é confundido com um padre milagreiro – e posso dizer a vocês que realmente é um grande engano. Nada nessa persona é digno de santidades ou até mesmo de louvores. O que li foi uma resposta dura ao aforismo do filósofo Jean-Paul Sartre, que dizia que “O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós“.
Aqui temos um personagem que pode ser encontrado no nosso dia a dia, em noticiários ou em nosso próprio convívio, e acredito que o autor intencionalmente quis trazer esse paralelo com a realidade, para ser dialogado não com a moral do personagem, mas com as consequências que uma sociedade desigual e polarizada pode ter nos indivíduos à margem. Em relação ao aforismo de Sartre, muitas vezes as consequências das nossas vivências não nos tornam heroicos, nos tornam apenas sobreviventes.
Há algumas coisas que me incomodaram como leitor na experiência e acho justo trazê-las aqui. Em alguns momentos a narrativa abre para algo mais ficcional que não é explorado, como o momento onde ele fica em uma casa estranha com personagens endoidecidos ou um momento onde ele vê a polícia retirando um corpo animalesco da mata. Essas coisas não são explicadas e parecem estar no livro apenas para aumentar as páginas. Além disso, senti falta de entender um pouco mais sobre a competição desse coliseu moderno; entendi que em momentos ele era uma crítica ao jornalismo sensacionalista ou até mesmo uma crítica mais evidente aos limites extrapolados ao máximo pela busca pelo entretenimento, mas faltou-me, ao menos, um pouco mais sobre o funcionamento dessa competição. Claro que posso justificar essas falhas pelo próprio estilo narrativo sendo em primeira pessoa, limitando o conhecimento que temos sobre essas questões. Indiferente a esses pormenores, para além de uma literatura banal, temos uma história que pode ser encarada como reflexiva e importante para abrir vários diálogos necessários, além de termos como sempre um ótimo trabalho gráfico da Darkside Books, que vale sempre a nossa compra.
Sobre o autor:
Bruno Ribeiro é escritor, tradutor e roteirista, autor de Arranhando Paredes (2014), traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider; Febre de Enxofre (2016); Glitter (2018), finalista da 1° edição do Prêmio Kindle e Menção Honrosa do 1° Prêmio Mix Literário; Bartolomeu (2019); e Como Usar um Pesadelo (2020). Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), venceu em 2020 o Prêmio Machado DarkSide com o romance Porco de Raça e também o Prêmio Todavia de Não Ficção.