Dançando no Escuro (2000)

4.2
(10)

Dançando no Escuro
Original:Dancer in the Dark
Ano:2000•País:EUA, Alemanha, Argentina, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Islândia, Itália, Noruega, Holanda, UK, Irlanda, Suécia
Direção:Lars von Trier
Roteiro:Lars von Trier; Sjón
Produção:Marianne Slot, Vibeke Windeløv
Elenco:Björk, Catherine Deneuve, David Morse, Peter Stormare, Joel Grey, Cara Seymour, Zeljko Ivanek, Stellan Skarsgård

Quando alguém te pergunta: qual o filme foi capaz de te despertar maior angústia?

Um bom aficionado pelo horror já pensa nos bizarrésimos Begotten (1990) ou Melancolie der Engel (2009), nos brutais Martyrs (2008) ou Audition (1999), quiçá nos sociopatadas de Pink Flamingos (1972), O Bar Luva Dourada (2019) e de Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975).

E tristeza?

À Espera de Um Milagre (1999), A Lista de Schindler (1993), Central do Brasil (1998), Tempo de Despertar (1990), Túmulo dos Vagalumes (1988)…

E desesperança?

Revolta?

RAIVA?

E se eu te contar que esse turbilhão de sentimentos pode surgir ao assistir um musical de pouco mais de duas horas de duração estrelado pela cantora Björk e dirigido por ninguém mais, ninguém menos que Lars von Trier?

Em Dançando no Escuro (2000), acompanhamos a história da imigrante tcheca Selma (Björk Guðmundsdóttir), uma mãe solo que se desdobra em turnos exaustivos em uma fábrica no interior dos Estados Unidos e que descobre que está ficando cega. Suas motivações são seu amor pela música e ser capaz de reunir dinheiro suficiente para pagar a cirurgia do filho, antes que a cegueira hereditária também o afete de maneira irreversível.

O terceiro filme da trilogia de representação melodramática denominada Golden Heart (Trilogia do Coração de Ouro) de von Trier, precedido por Ondas do Destino (1996) e Os Idiotas (1998), foi vencedor da Palma de Ouro e do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes para a estreante Björk. Também obtendo destaque pela indicação ao Oscar de Melhor Canção Original para a música “I’ve Seen it All”, composta e interpretada pela atriz islandesa – no longa, em dueto com o ator Peter StormareFargo (1996), O Grande Lebowski (1998), Constantine (2005), e comercialmente, com a participação do frontman do Radiohead Thom Yorke –, mesmo que tenha perdido a estatueta para “Things Have Changed“, de Garotos Incríveis (2000), com créditos de música e letra para Bob Dylan.

Quando assisti Dogville (2003) – também do mesmo cineasta– acreditei que havia visto sua ficção mais emblemática e que nenhuma outra direção do dinamarquês poderia superar essa experiência devastadora, mesmo quando comparado às suas produções posteriores, como Anticristo (2009), Ninfomaníaca (2013) ou A Casa que Jack Construiu (2018), as quais costumeiramente são mais lembradas nas discussões sobre suas criações mais extremas. Apesar de ainda considerar o longa de 2003 a obra prima do diretor, a experiência cinematográfica de Dancer in the Dark, com sua ousadia em mesclar a previsibilidade intencional e a tristeza como catarse, consegue ser não somente mais uma película chocante de Trier sobre uma mulher sofredora, mas também uma realização perversamente sedutora. A execução gráfica que fecha o enredo o torna também um dos melhores filmes sobre a pena de morte e uma das grandes críticas ao sistema prisional estadunidense, características que só reforçam sua singularidade.

Para atiçar ainda mais a curiosidade do leitor que ainda não o assistiu, esta se trata da maior coprodução da história: entre 13 países. O longa possui características técnicas de filmagem e de som um tanto quanto peculiares, que o tornam sombrio, monótono e difícil de assistir para algumas pessoas, já que seu estilo de película possui uma aparência grosseira e irregular. O uso da câmera de mão é inspirado no visual do Dogma 95 (manifesto publicado na Dinamarca em março de 1995, escrito para a criação de um cinema mais realista e menos comercial), mesmo que não obedeça totalmente às suas regras justamente por tratar-se de um musical, ainda que subverta totalmente o gênero.

Para exemplificar essa quebra de paradigmas podemos até parafrasear a imigrante Selma, que em uma das sequências mais trágicas do longa diz: “Quando eu trabalhava na fábrica sonhava estar em um musical, porque em um musical, nada de horrível acontece”. Porém, neste filme, diferente dos finais felizes do gênero onde geralmente tudo acaba bem, ocorrem plot twists horripilantes, excentricidades como um dueto com um cadáver e uma sequência final emocionalmente desgastante.

Ainda sobre seus aspectos técnicos, a obra é filmada com câmeras digitais portáteis de baixo custo para criar uma aparência de estilo documentário. O uso sutil de luz natural, sem efeitos e iluminação especial, faz com que Dançando no Escuro transmita uma experiência visual e sonora claustrofóbica que pode desencadear diferentes emoções, desde aplausos a estranhamento, tanto pelo ar sentimentalista e manipulador percebidos por uns, quanto pela construção genuinamente comovente por outros.

Toda essa feiura dos recursos estéticos utilizados muda abruptamente nas sequências de música e dança (compostos por Björk e coreografados por Vincent Paterson). Na cena do trem por exemplo, foram utilizadas mais de cem câmeras estacionárias para capturar cada sequência de uma variedade de ângulos. Mesmo que você, querido infernauta, certamente não seja um grande fã do gênero, saiba que diferentemente de muitas obras que pecam pelo excesso de pieguice, as sequências musicais que iniciam com os próprios barulhos do ambiente, como passos, buzinas e os sons industriais das fábricas – o que muito se assemelha às canções da própria cantora, instrumentista e produtora –, são de grande importância para o desenvolvimento do roteiro, ainda que este possua evidentes falhas.

É um thriller sem suspense, sem trilha sonora. Um musical brutal que aproxima-se mais dos melancólicos Os Miseráveis (1998, 2012), Amor Sublime Amor (1961, 2021) e Nasce uma Estrela (1976, 2018), do que de espetáculos deslumbrantes de Rocky Horror Picture Show (1975), Chicago (2002) e La La Land (2016). Por isso sua resenha está aqui no Boca do Inferno! Sem adentrar muito na trama e fugindo de grandes spoilers, são nesses transes escapistas do calvário de Selma que se encontra o mínimo de felicidade e esperança. A quantidade de músicas acompanha a evolução da cegueira da imigrante, adentrando em seu mundo pueril particular, onde a sua percepção de fantasia e realidade começa a decair tão violentamente quanto a sua própria visão.

Vale destacar também que o filme não aconteceria sem Björk. Presente na grande maioria das cenas, ela consegue transmitir perfeitamente todas as emoções do martírio de sua protagonista, em sua obstinação em aproveitar cada segundo de sua vida, ainda que seu altruísmo e lealdade a façam sofrer as mazelas da cobiça e da covardia de um mundo cruel ao qual ela não pareça – e talvez até não mereça – pertencer. Acompanhamos sua ruína e, mesmo sabendo que o pior está por vir, é inevitável torcer por Selma desde a primeira sequência, com My Favourite Things, do musical A Noviça Rebelde (1965), até as brutais cenas finais que transcorrem após a dolorosa interpretação de 107 Steps.

Não é à toa que o longa é o retrato do próprio esgotamento psicológico de Björk e, provavelmente, um reflexo da própria perversidade com que von Trier tortura e submete suas protagonistas femininas. A película é envolta em grandes polêmicas de alegações de assédio sexual denunciados pela cantora no movimento #metoo em 2017. Devido aos traumas, da gravação ao lançamento do filme, a protagonista prometeu que nunca mais voltaria a atuar, retornando aos cinemas somente vinte anos depois em O Homem do Norte (2022), do diretor Robert Eggers.

Mesmo com todas as controvérsias, em Dancer in the Dark a ousadia da realidade mal filmada surpreendentemente se torna um musical bem elaborado, transmitindo a maldade de um mundo diário a que já estamos habituados: trabalho, casa, trem e, eventualmente, prisão; e das perversidades e violências que se dispõem todos os dias em vestígios do cotidiano. Aqui fica a indicação de uma obra que facilmente pode estar incluída nas listas de melhores e mais originais filmes já feitos. Para quem deseja fugir do convencional em suas aventuras cinéfilas nos territórios da bizarrice e da melancolia, torna-se também uma recomendada opção capaz de habitar por um bom tempo na memória.

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Bianca Bezerra

Fotógrafa, escritora e estudante de produção audiovisual que precisa de doses diárias de cinema e Heavy Metal para manter a sanidade. Não dispensa uma história sinistra, sobretudo se for em uma boa e velha campanha de RPG! É apenas um ser humano qualquer, feito de carne e ócio.

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