O Vingador Tóxico
Original:The Toxic Avenger
Ano:1984•País:EUA Direção:Lloyd Kaufman, Michael Herz Roteiro:Lloyd Kaufman, Joe Ritter, Gay Partington Terry, Stuart Strutin Produção:Michael Herz, Lloyd Kaufman Elenco:Andree Maranda, Mitch Cohen, Jennifer Babtist, Cindy Manion, Robert Prichard, Gary Schneider, Pat Ryan, Mark Torgl |
Existem aqueles eventos que marcam a nossa vida pessoal e, como profissional, às vezes também a nossa carreira. Para o bem ou para o mal, são momentos marcantes: o primeiro beijo, o primeiro emprego, a primeira vez que vê o mar, a primeira vez que vemos nosso filho andar… Pode parecer estranho a você que chegou no título deste texto e de repente se depara com uma torrente de nostalgia com um filme chamado O Vingador Tóxico… Como ousaria fazer uma comparação esdrúxula como esta? Calma, pequeno gafanhoto, vou chegar lá.
O termo ‘icônico‘ não é empregado com eufemismo aqui: assim como os acontecimentos mencionados (reservadas as devidas proporções, evidentemente), existem filmes que encaixam tão bem na nossa personalidade que têm o potencial de moldar nossas ações futuras. Não são meros passatempos, por mais que não seja a intenção de quem o fez. Guilty pleasures? Não, algo mais profundo. Meu ponto é, caro leitor e cara leitora, que este texto que chega aos seus olhos é carregado de história e conexão pessoal com este escriba. Certamente não teria me aventurado – ou, pelo menos, não com tanta intensidade – pelos cantos mais obscuros, ignorados e esdrúxulos da Sétima Arte não fosse por conta desta obra e a de seus realizadores, a qual vi pela primeira vez em tempos imemoriais, e da qual ainda guardo meu VHS nacional (autografado, se me permite a ostentação) com orgulho, e uma das poucas que revisito periodicamente. Desta forma, neste caso especial, não espere desta redação uma crítica isenta, se é que isto exista, mas uma crônica na qual o objeto de análise e o analista se contorcem e se confundem em um único átomo: a essência de um filme trash.
Como se preâmbulos adicionais fossem possíveis, peço licença à sua paciência para uma nova tentativa de provocação: qual a definição de um filme trash? Entre conceitos mais elaborados do tipo, filmes de baixo orçamento com mulheres seminuas, situações absurdas, humor proposital ou não, violência explicita, reaproveitamento de cenários e elenco repleto de amadorismo… Eu internalizei e resumi para algo mais singelo: obras feitas com dinheiro de menos (às vezes talento de menos) e criatividade (ou falta de noção) de mais. E garanto que não existe na minha videoteca ou na minha memória outro filme que tão perfeitamente sintetiza tudo o que um trash deve ser como este filme, nascido no ano de 1984, da cabeça perturbada de um produtor com poucos recursos e sua pequena produtora… Chegamos, enfim, aO Vingador Tóxico.
Este é o tipo de obra que considero ser o batismo de fogo para quem pretende estar nas mesmas fileiras que as minhas: se assistir e não gargalhar ou, no mínimo, não levantar sua moral e esboçar um sorriso, muito provavelmente não vai gostar de nenhum outro. Caso contrário, te dou o parabéns ao clube, amigo ou amiga iniciado e seja feliz, pois em todas as quase quatro décadas desde o lançamento, poucas produções conseguiram equalizar as dificuldades e ser tão definitivas como este filme.
E como este amálgama que mencionei nos parágrafos anteriores, criador e criatura também se confundem, e tudo começa com um senhor muito bem humorado em uma frequência diferente dos reles mortais. A história da produção de The Toxic Avenger está tão arraigada à história do seu mentor, o produtor e diretor Lloyd Kaufman, e à fundação da Troma Entertainment, que até gerou um livro: “All I Need to Know about Filmmaking I Learned from the Toxic Avenger“, sua autobiografia lançada em 1998.
Em 1984, o gênero terror estava morto… Pelo menos é o que clamava a conceituada revista Variety em um artigo publicado na época. Michael Herz e Lloyd Kaufman, fundadores da produtora independente Troma, não concordavam em absoluto, pois, apesar de ter uma preferência na distribuição de comédias com sexo, já haviam distribuído um terror com um certo sucesso, Blood Sucking Freaks (1976).
Lloyd Kaufman leu o artigo enquanto estava no Festival de Cannes, tomou-o como um desafio e, com a ajuda do escritor Joe Ritter, desenvolveu uma ideia adormecida desde 1975, quando trabalhava como supervisor de pré-produção no set do filme Rocky (sim, esse mesmo que está pensando): um massacre em um clube. Então, com os títulos provisórios de “Health Club” e futuramente “Health Club Massacre“, a história tomou forma adquirindo aspectos mais politicamente incorretos e uma dose cavalar de humor ácido. Lloyd pegou 500 mil dólares de orçamento, dividiu a direção com o amigo e sócio Michael Herz e esta maluca versão gore de Hulk virou um cult instantâneo.
No que podemos chamar de roteiro, nosso herói acima de qualquer suspeita chama-se Melvin Junko (Mark Torgl) e é um bocó completo. Ele é um faxineiro meio nerd com alguns problemas cognitivos (daquele jeito estereotipado que só na Troma poderia passar incólume) que trabalha na limpeza do Clube de Saúde de Tromaville – ou uma academia, falando mais apropriadamente – e, como todo nerd de filme, é zoado sistematicamente pelos fortões e drogados do recinto, mais especialmente por uma gangue de devassos liderados pelo grandalhão Bozo (Gary Schneider, que participou de outro grande clássico da Troma, Class of Nuke ‘Em High).
Os delinquentes não são apenas meros arruaceiros, são também responsáveis por uma série violenta de atropelamentos que assola Tromaville. Todas as noites o grupo formado por Bozo e sua namorada Julie (Cindy Manion), junto com o casal Slug (Robert Prichard) e Wanda (Jennifer Prichard, que como o sobrenome acusa é casada de verdade com Robert) saem com seu carro envenenado procurando por vitimas incautas. O sangue frio destes vilões é demonstrado quando escolhem uma inocente criança passeando com sua bicicletinha na rua. Não obstante a violência do impacto, Bozo ainda passa com as rodas em cima da cabeça do menino, ou seja, são caracterizados como odiáveis filhos da puta.
Por algumas situações constrangedoras causadas involuntariamente pelo próprio Melvin, Bozo pega uma raiva violenta contra o jovem e por conta disto resolve pregar uma peça final: Julie finge estar atraída por Melvin e o força a vestir uma roupa de bailarina com a desculpa de ser um fetiche pela cor rosa – e o faxineiro cai como um patinho. Ao mesmo tempo, um motorista e um ajudante totalmente chapados de cocaína transportam uma carga de lixo tóxico que será despejado em Tromaville. Tudo nos conformes – apesar dos tonéis estarem destampados e desprotegidos ao ar livre -, eles resolvem parar em frente do clube para dar uma boa cafungada, se é que vocês me entendem.
Em meio a essa série de eventos desafortunados, Melvin é defenestrado do segundo andar e cai de fantasia e tudo dentro de um dos tonéis. Uma pequena multidão fica em volta do rapaz, enquanto o mesmo agoniza de dor e derrete aos poucos; mesmo assim, Melvin ainda tem forças para chegar em casa e tentar tomar um banho e tirar toda aquela sujeira, mas já é tarde demais. Aos poucos, Melvin vai se tornando uma aberração sem que sua mãe desconfie de alguma coisa.
Uma pequena pausa para falar sobre Tromaville. Basicamente se trata de uma cidade imersa em corrupção – como a ficcional e brasileira Sucupira e outras não tão ficcionais assim. O obeso prefeito Belgoody (Pat Ryan, de outro clássico, Street Trash, que faleceu em 1991 devido a um ataque cardíaco) faz vista grossa com relação ao caos e à violência na cidade, principalmente para desviar o foco das atenções, pois as grandes corporações pretendem fazer de Tromaville o lixão radioativo da América. Tudo obviamente com a anuência da polícia – capitaneada pelo comandante neo-nazista Himmel (David N. Weiss, que futuramente seria mais bem sucedido como o roteirista de filmes como Shrek 2) -, e quem tenta ser honesto, ou é corrompido por generosos subornos, ou é espancado sumariamente.
Isso quase acontece com o incorruptível oficial O’Clancy (Dick Martinsen), que não aceita os caprichos da máfia e quer apenas limpar as ruas dos bandidos, quando, durante uma ronda, encontra o traficante Cigar Face (Dan Snow, que também fez todas as continuações do filme) – em uma óbvia alusão ao grande Scarface, de Brian de Palma – e seu outro grupo de criminosos, que querem fazer um acerto de contas com o policial. Quando tudo parecia perdido, eis que um deformado ser emerge da escuridão com um esfregão e espanca rudemente os bandidos, nascendo assim a lenda do Vingador Tóxico (agora interpretado por Mitch Cohen), que a partir daí se torna o principal defensor dos fracos e oprimidos de Tromaville.
Porém, nosso monstro tem sentimentos (mesmo porque ainda é virgem, fato ressaltado insistentemente pelo roteiro), e é em um momento de aperto que ele encontra o amor: ao impedir um violento assalto a uma lanchonete – de maneira igualmente violenta – Melvin salva do estupro uma linda garota chamada Sara (Andree Maranda). Ela é cega e seu cão guia fora morto com um tiro de espingarda pelos bandidos, contudo teve sua vingança pelas mãos do herói. Mesmo sem conseguir enxergar a aparência de seu salvador, Sara se apaixona pelo real Melvin que ainda existe debaixo de seu rosto deformado e se muda com ele para um depósito de lixo isolado da civilização preconceituosa de Tromaville, onde se supõe que possam viver tranquilos.
O que significa paz para a população atrapalha os planos de Belgoody e confederados que perseguirão e tentarão desmoralizar de todas as formas possíveis. Conseguirá nosso herói evitar todas as intempéries de ser uma aberração e viver feliz com a doce Sara? O vingador tóxico obterá êxito em limpar as ruas da temida gangue de Bozo?
Violência desenfreada sem um motivo justificável, nudez gratuita em cenas aleatórias, personagens exagerados… Através do filme de seu herói feioso, o diretor Kaufman parece nos dizer: “Bem-vindo ao mundo da Troma“. E o diretor faz uma escolha excelente ao dar mais espaço para as situações e piadinhas isoladas com os personagens e costumes de Tromaville do que para a história do vingador em si, pois neste roteiro não há muito que se contar e, fazendo diferente, o filme teria uns 30 minutos no máximo. Algumas situações são tão absurdas e engraçadas que, mesmo se eu pudesse descrever com precisão e à altura do que aparece em cena, perderiam muita graça se o fizesse.
Todavia, sem sombra de dúvida, a mais marcante das características é a total ausência de caráter dos vilões. Valorizados pela direção de Kaufman (quase todos os habitantes de Tromaville estão alistados em algum agrupamento de delinquentes), eles protagonizam cenas tão ofensivas que poderiam causar uma polêmica dos diabos caso se tratasse de uma produção mais séria ou nos tempos politicamente corretos de hoje. Para citar apenas outras duas passagens, temos uma espingarda apontada para um bebê de colo durante um assalto a uma lanchonete e uma velhinha que é espancada com a própria muleta. Tudo auxiliado pelo elenco descolado e provavelmente se divertindo muito. E falando em elenco, quem tiver um olho mais clínico poderá ver pontas de futuros conhecidos, como o astro B de ação Patrick Kilpatric (de A Fortaleza e Queima de Arquivo) e a ganhadora do Oscar Marisa Tomei (melhor atriz coadjuvante em 1993 por Meu Primo Vinny).
Tanto a maquiagem quanto os efeitos são interessantes e convincentes: levando em consideração a época e o orçamento, o trabalho da Troma é invejável: entre desmembramentos, crânios esmagados e vísceras expostas, o sangue jorra sem pudor e, ao mesmo tempo em que causa gargalhadas, pode também causar repulsa. Como a grande maioria dos guilty pleasures, os defeitos – considerando só os despropositais – são igualmente numerosos e a maioria residindo na reutilização de cenas em flashbacks à exaustão, o que pode ser sinal de orçamento apertado para preencher o tempo de filme, mas, analisando de forma mais abrangente, não chega a comprometer a edição como um todo. Também poderia citar a escolha da trilha sonora – um amontoado de baladinhas manjadas e pop-farofa do final dos anos 80 – que, a despeito de adequada à proposta do filme e à época em que foi feito, ficou datada e não deve agradar a todos os ouvidos.
The Toxic Avenger não foi um sucesso imediato porque a produtora não pôde fazer uma campanha de marketing adequada devido à falta de recursos financeiros, porém, impulsionado pelo boca-a-boca após as primeiras exibições e em insistentes sessões da meia-noite nos cinemas de Nova York, foi angariando fãs e consequentemente mercado na vindoura explosão das locadoras de VHS. O Vingador Tóxico chegou a ser lançado no Brasil neste período pela extinta Central Home Vídeo – com a exagerada frase de rodapé “O Extremo da Loucura Americana” -, sendo este o único filme de Lloyd Kaufman a ser lançado por aqui na época. Hoje é possível encontrá-lo com todas as continuações em um box lançado pelo selo “Obras Primas do Cinema” (oi?) recheado de extras e materiais gráficos bônus, ainda que falte o quinto disco lançado na gringa. Outro agravante: pela descrição no varejo (não tenho ela fisicamente para confirmar, mas convém alertar), a versão do filme neste box é a censurada, com menos de 90 minutos. Se tiver a chance, procure pela director’s cut de 110 minutos.
O reconhecimento fez com que Toxie (apelido carinhoso dado ao monstro) retornasse alguns anos depois em dois filmes de menor impacto e até um pouco desapontadores: The Toxic Avenger Part II e The Toxic Avenger Part III: The Last Temptation of Toxie, de 1989, que foram rodados com a intenção de ser uma só produção, porém com o excesso de material filmado foi editado como dois filmes, e, em 2000, foi lançada sua quarta aventura e a última até o momento, Citizen Toxie: The Toxic Avenger IV. Todos lançados em todos os formatos possíveis e imagináveis pela Troma.
Contudo, Toxie não ficou limitado à franquia cinematográfica e se tornou o Mickey Mouse da Troma: virou uma série de desenho infantil intitulada Toxic Crusaders, que rendeu 13 episódios para fazer frente à febre das Tartarugas Ninja e foi licenciada para virar game na era 8-16 bits, e que, por sua tiragem limitada, algumas edições são caríssimas (um dia, quem sabe, falo sobre isto). Onze edições de um gibi foram publicadas pela Marvel Comics entre abril de 1991 e fevereiro de 1992, e o roteiro também virou um livro lançado em maio de 2006 chamado “The Toxic Avenger: The Novel“, que gerou um musical, “Toxic Avenger: The Musikill“, isso para não falar de toda a série de produtos e memorabilia que fez do mutante um filão bem lucrativo, ou, pelo menos, pelos modestos padrões da produtora.
Voltando ao filme original, O Vingador Tóxico, como praticamente todo cult independente, é um “ame-o” ou “odeie-o” – embora eu particularmente ache difícil de alguém ser tão mal humorado para detestar um filme tão divertido como esse -, porém, de qualquer maneira, o aspecto incontroverso é que é impossível ficar indiferente. Em um mundo justo todos deveriam ter a oportunidade de assistir a filmes assim. Se você tiver esta chance, não a desperdice. Talvez a nostalgia que compartilho hoje com você seja o início de sua jornada irreversível para o estranho mundo do cinema bagaceiro.
CURIOSIDADES
– A cabeça da criança que é esmagada debaixo das rodas do carro de Bozo foi feita com um melão enchido com corantes e outras coisas para dar “consistência“. O resultado é um efeito barato que ficou muito realista;
– Patrick Kilpatrick ficou revoltado após a cena em que ele teve que apontar uma espingarda para um bebê de colo e desistiu do filme. Curioso que nem a mãe da criança ficou transtornada com a cena;
– Mark Torgl (o ator que interpretou Melvin) se queimou de verdade durante a filmagem em que um policial tem suas mãos incendiadas pelo lixo tóxico;
– Mitch Cohen levava quatro horas para ficar pronto no traje de Vingador Tóxico;
– As cenas em que aparece o caminhão que carrega o lixo tóxico foram filmadas sem permissão das autoridades. Assim, alguns motoristas, preocupados com a maneira hedionda com que os barris eram transportados, ligaram para a polícia acreditando que se tratava de um fato real e causaram transtorno para os produtores;
– Não se impressione com o fato de nenhum dos personagens se referir ao herói como “Toxic Avenger“. Este título foi dado após o filme estar finalizado e por sugestão de um distribuidor internacional, que disse que produções com títulos chamativos e palavras fortes vendem mais. Funcionou, concorda?
Esse filme é icônico assim como esse site. Lembro de quando era uma faca com sangue o logo … kkkkkkkkkkkk
Um filme extremamente ruim e de tão ruim , chega a ser carismático kkkkkkkkkkkkkk
O puro suco do thrash 80 kkkkkkkkkkkkkkkkkk
Esse filme é fantástico….obrigatório a todos que gostam de uma bagaceira muito bem feita
me identifico totalmente com seu texto… toxie marcou uma fase “de ouro” da minha vida nerd cinéfila… eu era o único da minha rua que timha um video cassete… e lembro como se fosse hoje o final de semana que aluguei o vingador tóxico, e fiz uma sessão com todos meu amigos da rua para assistir… foi algo!!!