4
(4)
No Limiar do Inferno
Original:The devil takes you home
Ano:2023•País:EUA
Autor:Gabino Iglesias•Editora: Darkside Books

“A mais perigosa criação do mundo, em qualquer sociedade, é um homem sem nada a perder.” – Malcolm X

Já começo minha crítica com essa citação de Malcolm X, pois o tom dessa obra extremamente niilista e visceral parte dessa premissa, ao nos apresentar o personagem do Mário, um imigrante mexicano nos EUA que vê sua vida desabar em questão de segundos. Sua filha de 4 anos recebe o diagnóstico de leucemia, seu casamento enfrenta problemas em decorrência da situação financeira debilitada que a família começa a passar e para piorar tudo ele perde o emprego. Com os custos altíssimos da internação e do tratamento de sua filha (que inclusive se apresenta ineficaz), ele pede ajuda a um amigo do passado que é envolvido com trabalhos não tão ortodoxos.

Para levantar dinheiro rápido ele aceita pequenos serviços, mas cada vez mais é sugado para uma onda de violência que ele não imaginava. Tudo o encaminha para uma proposta que supostamente mudaria sua vida: interceptar um carregamento de drogas vindos do cartel mexicano e receber uma grana milionária em troca. Entretanto, essa viagem, que se inicia com seu amigo e um homem desconhecido chamado Juanca, toma tons cada vez mais sinistros, pois no caminho até essas drogas todos serão testados das mais diversas formas até terem a coragem de passar pelo limiar do inferno e saírem vivos de lá se for possível.

Gabino Iglesias vive em Austin, no Texas, e é nesse cenário arenoso, quente e hostil que acompanharemos boa parte dessa história. O calor em excesso nos sufoca e é essa sensação que tive ao ler essa história, que é tão cheia de camadas e discussões super atuais, que acabam por justificar os prêmios recebidos, como o Bram Stoker Awards de 2022 como Melhor Romance e, na mesma categoria, recebeu no mesmo ano o prêmio Shirley Jackson Awards. Só para ilustrar, essas premiações são o Oscar literário do gênero do horror, então é um feito bem considerável.

Vale também citar que essa obra foi finalizada num cenário único. Gabino Iglesias perdeu seu emprego, assim como Mário, e ficou em isolamento, assim como todos nós, em plena pandemia de Covid-19. Foi nesse momento que ele finalizou No Limiar do Inferno. Cito isso, pois o livro é escrito em primeira pessoa, sendo apresentado pela ótica niilista de Mário, e é algo tão realista, que consigo ver as vozes do criador e da criatura misturadas ao nos apresentar tantas complexidades.

A critica ao sistema de saúde americano e como o mesmo pode ser cruel e até mercenário é latente no primeiro ato da história. Em diversos momentos consegui agradecer por estar no Brasil e por termos o SUS. Imaginar um ente querido morrendo, com tratamentos disponíveis à disposição, mas sem poder ter acesso aos mesmos por falta de dinheiro, é tão cruel que por si só já daria um livro inteiro de terror.

Entretanto, Gabino não se contenta só com isso e nos joga na cara o problema da xenofobia e do racismo estrutural que latinos vivem nos EUA. O sonho americano é apresentado em um cárcere, ou em um muro, onde os personagens latinos só são aceitos do lado de fora. O racismo sofrido pelos personagens não é apenas algo vocabular ou cultural, há uma sequência em um bar tão tensa e real que infelizmente é algo identificável, pois há muitos vídeos virais muito similares, só que no livro com um final bem mais explícito e violento.

Na jornada de Mário o conhecemos como um personagem complexo e real, nem sempre bondoso ou estereotipado, com uma moral extremamente corruptível e com objetivos nem sempre tão belos. Gabino não justifica o crime, mas apresenta os caminhos que levam muitas pessoas ao mesmo.

Já por sua vez, o tom sobrenatural da história se apresenta em doses homeopáticas, entrando em temas como ancestralidade e religiosidade local, mostrando que a violência pode surgir também da fé e que, por surgir dela, tenta se enraizar em justificativas pífias, que só demonstram de maneira clara a hipocrisia humana .

Um dos trechos mais chocantes e indigestos dessa obra é relacionado a uma criança tida como milagrosa. Posso dizer a vocês que é uma cena que se fixou em minha mente como cheiro de carniça num lugar fechado.

Outro ponto trazido na obra é o simbolismo que a violência se apresenta nos cartéis, com assassinatos tão detalhados e sinistros que chegam a ser teatrais, não sendo apenas mortes, mas recados a serem transmitidos a outros grupos de odes a mortuários.

O final do livro não é agradável e pode até mesmo acabar com a experiência de muitos leitores, mas para mim o livro apresenta em seu fim o tom da obra toda.

Se você busca um livro que te fará pensar e se chocar, com toda certeza essa é uma indicação, entretanto não é uma viagem para todos, pois não há filtro para a violência em quase todos os aspectos aqui. Se posso te dar uma dica, em momentos que o livro te pegue de fato, pare e respire antes de continuar a leitura, pois não há como ler essa história em um fôlego só.

O que você achou disso?

Clique nas estrelas

Média da classificação 4 / 5. Número de votos: 4

Nenhum voto até agora! Seja o primeiro a avaliar este post.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *