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Tesserato: A Tempestade a Caminho
Original:Tesserato: A Tempestade a Caminho
Ano:2023•País:Brasil
Autor:Franklin Carvalho•Editora: Noir

Como é a vida e a mente de um indivíduo cuja única coisa digna de nota na sociedade é o quanto ele consegue produzir? Não precisamos pensar muito para responder essa pergunta, vide o mundo ao qual vivemos, não é mesmo? Muitas vezes temos cargas horárias pesadíssimas e cobranças absurdas para ganharmos o suficiente apenas para uma moradia e por comida na mesa, e não é à toa que o índice de pessoas com burnout cresce a cada dia, enquanto a elite enriquece às custas da saúde física e mental do proletariado. Os recursos naturais acabando e as pessoas sendo cada vez mais exploradas das mais diversas formas é palco para diversas distopias – que estão cada dia mais perto de virarem realidade -, e é para esse cenário que o escritor baiano Franklin Carvalho, vencedor dos prêmios SESC em 2016 e São Paulo de Literatura em 2017 pelo seu romance Céus e Terra, transporta o leitor em Tesserato: A Tempestade a Caminho.

O narrador da história e protagonista, cujo nome não é revelado, é natural da miserável cidade de Selém, um pequeno povoado árido nas bordas de um deserto que já teve dias de triunfo e glórias no passado, quando era ponto turístico por causa de suas abundantes fontes de água e exuberantes cassinos. Porém, os recursos esgotaram, a economia vai de mal a pior e o presente é bem diferente para seus habitantes, que fazem o possível para sobreviver. Há uma tentativa de melhoras na economia local após a descoberta de reservas de sulfato de bário nos solos da cidade, e as pessoas vivem para trabalhar em tais locais, impulsionadas pelo governo a irem ao extremo em prol do “bem maior”. Nosso protagonista, um ex estudante de ciências, acredita ter encontrado um Tesserato, um objeto hipotético do campo matemático que, acredita-se, possui propriedades místicas e só é visível para aqueles que enxergam em quatro dimensões, e isso dá um novo sentido à sua existência sem expectativas. Junto a isso, ele afirma ter um benfeitor que sempre o guiou para poder melhorar de vida e nutre grande apreço pelo homem chamado Ivan Hermínio, uma figura deveras misteriosa que tirou nosso narrador de uma vida estagnada e sem perspectivas e que, mesmo falecido, parece exercer grande influência em sua vida até os dias atuais.

Todo o mundo aparenta estar em situação decadente, mas é em Selém que a distopia toma sua forma. A cidade não tem mais árvores naturais, mas sim criadas artificialmente a partir de objetos recicláveis; lagartos gigantescos andam por suas cercanias desérticas; parte de sua população mora em cavernas no subsolo sem ter contato com o exterior e qualquer busca por conhecimento ou uso de tecnologia é visto como inútil pelas pessoas, pois todo o conteúdo considerado necessário é controlado e transmitido na televisão pelo Ministério da Pobreza e da Fome. Esse órgão, aliás, é quem comanda todo o país, mantendo uma sociedade cuja produtividade no trabalho está acima de qualquer coisa, qualquer bem-estar. As pessoas existem para trabalhar, seu corpo é instrumento de trabalho e nada mais e, se assim o Ministério quiser, seus membros considerados inúteis devem ser decepados em prol da produtividade. Todo o sistema é voltado para as massas se conformarem com o pouco que tem e serem gratas por produzirem em troca de alguns poucos trocados em seja lá qual subemprego conseguirem, de forma que acham absurdo quando alguém se revolta com o jeito que as coisas são ou acha-o abusivo. Simplesmente o capitalismo na sua mais pura forma. E não, não adianta se doer por essa afirmação, isso só reforça a crítica presente em Tesserato, que tem mais nuances da nossa doente sociedade atual do que gostaríamos.

Os elementos narrativos usados de forma interligada para mostrar como essa distopia funciona passam pela ficção científica à política, de forma semelhante às obras de George Orwell ou filmes distópicos como Mad Max e outros, abordando as dificuldades que a parcela mais marginalizada da população tem para acessar a educação e métodos que normalmente seriam considerados desumanos (como mutilações corporais) sendo perfeitamente aceitos pelas pessoas como algo normal e até mesmo coerente devido ao uso massivo de propagandas e religião para alienação, tudo é feito para manipular o indivíduo a aceitar o seu destino, produzir e, se houver insatisfação ou depressão, fingir que está tudo bem ou se matar de vez, afinal, são apenas números e são facilmente substituíveis. Há também um quê de mágico e sobrenatural, com as conversas que o protagonista afirma ter com Ivan e as descrições de suas características sempre mutáveis, e isso entra naquela linha tênue entre fé/religião e misticismo, já que Ivan é tratado praticamente como um deus pelo narrador. E é exatamente nesse ponto que a narrativa acaba pecando um pouco. As críticas políticas e sociais são bem pontuadas e facilmente percebidas, porém, quando tenta incluir o sobrenatural, acaba não funcionando tão bem. Fica a impressão de que pontas ficaram soltas e certos elementos foram apenas jogados ali quando não havia a menor necessidade. Além disso, em diversos momentos o uso da linguagem rebuscada utilizada pelo autor deixa a leitura maçante, como se falasse muito para chegar a lugar algum ou floreia algo simples, quando uma linguagem direta seria mais eficaz, especialmente levando em conta a simplicidade da terra retratada. Os longos pensamentos do protagonista, que por sua formação científica muitas vezes divaga de uma maneira um tanto verborrágica, pode ser um pouco cansativa para quem está lendo.

De qualquer modo, Tesserato acaba sendo uma reflexão crítica de nossa própria sociedade. As massas são vistas como mão-de-obra descartável e os trabalhadores são quase propriedade do empregador, tendo que entregar resultados positivos não importa as condições que lhe são dadas, enquanto uma parcela dos setores religiosos cresce e se envolve na política, fazendo a laicidade do Estado ficar apenas no papel. Os meios de comunicação muitas vezes servem apenas ao sistema para alienar a população – o famoso pão e circo – e manter o status quo, além de uma cultura de reverência a aqueles que tem sucesso financeiro na vida, fazendo com que acreditem que todos podem alcançar isso através de trabalho duro e merecimento. Tudo isso fica de fácil compreensão no texto de Franklin Carvalho. A obra funciona muito bem como uma distopia repleta de críticas necessárias, onde o leitor vai identificar alusões a muitos pontos errados existentes em nossa sociedade atual, entretanto, perde força quando tenta incluir misticismo e afins. Não é necessário nada de sobrenatural em um enredo onde o horror da realidade está tão escancarado.

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