Propriedade
Original:Propriedade
Ano:2022•País:Brasil Direção:Daniel Bandeira Roteiro:Daniel Bandeira Produção:Livia de Melo Elenco:Malu Galli, Sandro Guerra, Carlos Amorim, Anderson Cleber, Roberta Lúcia, Amara Rita Magalhães, Marcílio Moraes, Nivaldo Nascimento, Aruandhê Pereira Natureza Rodrigues, Tavinho Teixeira |
A discussão sobre propriedade de terras e direitos dos trabalhadores é antiga, com os primeiros acordes na colonização, nos confrontos com indígenas, passando pelo trágico período da escravidão. Mas foi somente nas décadas de 50 e 60 do século passado que aconteceram manifestações com grande impacto na urgência de uma reforma agrária. Nos anos 70 e começo dos 80, movimentos de ocupação e acampamentos pediam uma luta social e principalmente liderança, dando início ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), uma organização política em prol da democratização das terras. Todos esses períodos envolveram lutas e assassinatos até culminarem nos massacres de Corumbiraia, Rondônia, em 15 de julho de 1995, e de Eldorado dos Carajás, Pará, em 17 de abril de 1996. Mesmo com esses exemplares sangrentos, ainda hoje existem casos de violência, registros de trabalho escravo e pessoas que buscam seu espaço e lutam por dignidade. O longa Propriedade traça uma alusão assustadora e claustrofóbica de todo esse cenário.
Tem a direção e o roteiro de Daniel Bandeira (de Amigos de Risco, 2007), e o protagonismo da ótima Malu Galli (da série Desalma), interpretando Tereza, uma ex-estilista que vive à sombra de um trauma: ficara sob a mira de uma arma até o bandido ser baleado. Devido ao episódio, ela sofre de agorafobia, tendo medo de sair às ruas, socializar-se e, claro, da violência urbana. Afastada da cidade grande com a família, seu marido, Roberto (Tavinho Teixeira), conta-lhe que, para que ela se sinta ainda mais segura, resolveu comprar um veículo blindado. Agora planeja encerrar as atividades na fazenda e transformá-la em um hotel. O problema é que o local é o trabalho e moradia de diversas pessoas, sem que haja uma proposta de envolvê-las na mudança.
Assim que recebem a notícia sobre a perda de emprego e um deles é encontrado morto, o grupo começa a se mobilizar para abrir o cofre da moradia para ter acesso aos documentos e também ao dinheiro que o patrão lhes deve. Contudo, Tereza e Roberto acabam de chegar ao local, e o confronto é inevitável. Ao saber que o marido está gravemente ferido e perceber que está sendo caçada pelos trabalhadores, ela consegue correr para o veículo, tendo que se proteger das tentativas de ataque e das ameaças, enquanto busca um meio de sair desse pesadelo.
Como se percebe, trata-se de mais uma produção que envolve claustrofobia e ambientação quase única. Sufocada pelo cenário ameaçador, contando com a excelente atuação de Malu Galli, Daniel Bandeira faz um trabalho que envolve crítica social sobre as diferenças de classe, sem se esquivar do terror. A protagonista se fere, mas também sabe o momento de reagir, perdendo gradualmente sua humanidade; e o mesmo acontece com os “invasores“, alternando episódios de tentativa de convencimento através do diálogo e da violência. E nesse contexto não há mocinhos e bandidos, ainda que você esqueça as razões e tente torcer para um lado. Não há como impedir um final, em qualquer circunstância, pessimista. E, no caso, Bandeira apresenta um que pode ser considerado aterrador.
É claro que, para a narrativa fluir e criar situações de tensão, é preciso considerar algumas facilitações do roteiro, como o acesso à internet que depende de modem, o modo como ela “conquista” uma jovem através de seus desenhos, e toda a fuga ocasional para o confronto com um dos personagens mais inconsequentes da produção. Até mesmo o último ato poderia não acontecer como previsto, dependente do sono profundo da protagonista. Contudo, o conceito está todo ali, a mensagem proposta e a representação de uma situação que, embora seja perturbadora, está muito distante da realidade.
Uma ótima surpresa! Filme tenso do começo ao fim, luta de classes na veia (sem querer ninguém faça discurso, diga-se de passagem). Malu Galli é excelente e o elenco todo manda bem.