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Terrores Latinos
Original:Terrores Latinos
Ano:2023•País:Brasil
Autor:Ana Rüsche, Carolina Mancini, Gutemberg Löwe, Irka Barrios, Jaime Azevedo, Jessica Gonzatto, Julia do Passo, Juliana Cunha, Juliana Rabelo, Lidia Zunin, Lucas Marchetti, Marcelo Augusto Galvão, Nikelen Witter, Roberto Beltrão, Sabine Mendes Moura, Thais Messora, Truduá Dorrico, Úrsula Antunes, Vitor de Lerbo, Vitto Graziano•Editora: Luva

A diversidade cultural que temos na América Latina não é novidade para ninguém, e é claro que, com isso, é inevitável que tenhamos inúmeras lendas e folclores que atravessam gerações a séculos, fazendo parte do imaginário popular das regiões as quais se originaram. Algumas chegaram a se tornar conhecidas mundo afora – como é o caso de Santa Muerte e La Llorona -, entretanto, muitas outras são desconhecidas até mesmo entre os países vizinhos. Com essa riqueza de histórias disponíveis, a editora Luva lançou a antologia Terrores Latinos, onde reuniu diversos autores para resgatarem 20 lendas latino-americanas oriundas dos mais variados países, como Brasil, Argentina, Cuba, Porto Rico, Guatemala, Equador, Peru, Uruguai, entre outros. A edição ainda conta com introdução da escritora boliviana Giovanna Rivero e posfácio de André de Araújo, além de ilustrações de Leander Moura.

Terrário, de Irka Barros, abre a antologia. O conto é baseado no mito cubano El Babujal – espírito maligno em forma de lagarto, invisível aos mortais – e, sem enrolar, nos apresenta uma sociedade onde o único valor que mulheres tem é o reprodutivo. História curta e direta ao ponto, o cerne da narrativa é a forma estranha e grotesca na qual se dá a reprodução, estando ligada diretamente à lenda de El Babujal. Também critica o pouco valor que a mulher recebe, sendo considerada útil apenas para reprodução em muitos lugares até os dias de hoje.

Em seguida, o espectro bestial venezuelano El Silbón é inserido por Jaime Azevedo em Sêmen e Acetona. A história foca na duradoura carga emocional negativa de um conturbado passado entre mãe e filha, adentrando a mente de uma mulher que se lembra dos piores momentos com sua mãe. Tais lembranças a fazem se convencer de que sua genitora, tão diferente dela na personalidade, não é um ser humano, e sim uma criatura demoníaca que deve ser destruída. A crescente insatisfação da filha é trabalhada até os dois últimos parágrafos do conto, até chegarmos ao clímax que também encerra a história, onde finalmente temos o sobrenatural dando as caras.

A seguir, inspirada na famosa lenda de Eldorado, Campos de Plantoides, de Ana Rüsche, nos apresenta dois robôs inteligentes que se rebelam contra os humanos da expedição científica a qual fazem parte. Todo o desenvolvimento nos dá uma história mais voltada para a ficção científica, que reimagina o Eldorado e seu ouro de uma maneira bem diferente do que se pode esperar.

Em Ayudame, de Marcelo Augusto Galvão, o narrador é um homem atormentado com sonhos sobre o nefasto passado de Julio, um antigo namorado de sua tia. Neles, sempre há diferentes luzes, que são ligadas a fábula uruguaia das Luces Malas. Pincelando elementos históricos do auge das brutais ditaduras que ocorreram na América do Sul na segunda metade do século XX, a presença do sobrenatural é mais um plano de fundo para trabalhar como, na verdade, os verdadeiros monstros são os humanos.

Brígida, a protagonista de As Horas Mortas, de Roberto Beltrão, é uma senhora curiosa e desconfiada que, ao perder o horário da missa dominical, ainda assim decide entrar na igreja mesmo fora do horário ao perceber que algum tipo de celebração religiosa segue ocorrendo. Cultos ou missas com um quê de sobrenatural estão muito presentes em casos do interior brasileiro, sendo uma história de fácil identificação para os leitores justamente por causa disso. O conto segue num ritmo divertido, proporcionando uma leitura fluida e agradável.

Truduá Dorrico usa o folclore Macuxi para trazer em A Pele do Tempo uma história simples sobre uma jovem alma que não se convenceu sobre sua morte e a transformação que, como recém falecida, deve passar. Por causa dessa recusa, precisa ser guiada pelo espírito de um familiar que há muito tempo já passou para o além vida. O conto liga a morte súbita da protagonista com um problema real, que acontece nos dias de hoje, mas que não tem a atenção devida: os gananciosos garimpeiros que praticam a atividade ilegalmente em terras indígenas ou de proteção ambiental, sendo como verdadeiras milícias de crime organizado, tirando a vida de qualquer um que achem necessário.

O maior conto da obra, e por isso com um desenvolvimento mais lento que os demais, Cementerio de los Ahogados, escrito por Carolina Mancini, nos leva ao sul do Chile. A história conta como o navio Caleuche, em ocasiões especiais, recolhe o corpo dos mortos no oceano e os transforma em sua tripulação eterna. Tal lenda chilena possui muitas semelhanças com a embarcação fantasma Holandês Voador, tão explorada em diversas mídias, muito porque os mitos de navios fantasmas ao redor do mundo são bem similares, apesar da lenda chilena apresentar várias versões. Nesta história, bem descritiva, a forma como os novos tripulantes viram parte do Caleuche deve ser reconhecida por aqueles que assistiram a franquia Piratas do Caribe.

Fragmentos de um Coração Despedaçado, de Vitor de Lerbo, é uma crítica às condições cruéis aos quais trabalhadores muitas vezes são submetidos, usando do fantasioso El Pombero, um duende do folclore paraguaio, como o sobrenatural agindo em prol dos que sofrem injustiças. Diferente dos outros contos do livro onde os elementos fantásticos são abordados muitas vezes apenas na reta final, El Pombero é figura constante, aprontando suas macabras traquinagens desde o início da história.

Não Se Escuta Choro, de Juliana Cunha, moderniza o equatoriano Guagua Alca, um espírito nascido da morte de um infante. Com tema delicado, temos a história de Sabine, uma jovem que acabou de dar à luz a um filho oriundo de um implícito abuso sofrido por seu padrasto. Após introduzir um pouco do relacionamento de Sabine com sua família, as coisas vão ficando bizarras gradativamente até chegarem na velocidade máxima em seus momentos finais.

Julia do Passo retorna aos anos 60, durante a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana, em A Quarta Irmã. Misturando a crença local da Ciguapa com elementos históricos reais, o conto narra a jornada de Dedé, que teve suas três irmãs assassinadas pelo ditador, e como ela reagiu após a tragédia familiar. Num ritmo mais lento, a base da história é mostrar como Dedé era diferente de suas irmãs, muitas vezes usando animais e insetos na natureza para fazer alegorias a seu comportamento e explicar sua ligação com o sobre-humano.

Em Camarones A La Cimarrona, de Sabine Mendes Moura, a protagonista é uma escrava que conta a sua jornada para conseguir o que acredita ser o melhor caminho para escapar de sua vida de escravidão, sendo um relato de origem para a fábula colombiana La Tunda. O horror aqui não está em elementos sobrenaturais, mas sim nas atrocidades que um escravo sofria.

Aquilo Que Ficou Insepulto, de Nikelen Witter, é uma crítica direta às formas de repressão muitas vezes exageradas às quais agentes do Estado usam para manter a lei. Contando o que parece os primeiros momentos do relacionamento entre Juan e Ana Júlia, uma pesada tragédia pessoal e o passado militar de Juan são introduzidos aos poucos conforme a história se desenrola, conectando seu final com a lenda do espírito vingador mexicano La Llorona.

Gutemberg Löwe também aborda um tema sensível no conto Pastor de Lobos, com Audí e sua filha, Nery, sendo aterrorizadas por Michael, um homem abusivo e obcecado por Audí após um breve relacionamento entre eles. Mal sabe Michael que Nery tem ligação com El Cadejo, o protetor guatemalteco de natureza sombria. Com um começo idêntico a histórias de abuso e perseguição que (infelizmente) muitas mulheres sofrem, o sobrenatural é inserido apenas na reta final da história, como solução ao problema quando as coisas chegam em seu nível mais perigoso.

O curtinho Roedores, de Juliana Rabelo, conta o desespero de um mineiro que, temendo um acidente ao adentrar numa profunda e perigosa mina, se lembra da lenda boliviana El Tío e tenta a todo custo evocar a entidade para proteger sua vida. Apesar de ter um andamento bem rápido, todo o pavor do pobre trabalhador ao tentar executar seu trabalho consegue ser passado de maneira angustiante.

O ponto mais alto da coletânea é o conto O Leite da Mãe, de Jessica Gonzalez. Amaia, uma mãe que tem vários hematomas e ferimentos por amamentar por um tempo longo demais seu filho, Joé, é julgada por familiares pela forma que o cria. Para completar, inúmeros animais da fazenda da família morrem misteriosamente. A estranha relação entre mãe e filho, entrelaçada com as peculiaridades macabras que ocorrem ao redor da família, são muito bem trabalhadas, dando um senso crescente de que algo ainda mais bizarro irá – e vai – acontecer. Quem viveu o final dos anos 90, deve lembrar que causo semelhante aconteceu no interior de São Paulo e, assim como na história, a lenda do Chupacabra assustou toda uma região. Diferente do que muitos pensam, a entidade não teve origem no Brasil, e sim em Porto Rico.

O Jardim das Cabeças Decepadas, de Thais Messora, mostra a bombeira Letícia, que procura um empresário que desapareceu num denso matagal. Os moradores locais tentam dissuadi-la da busca contando várias fábulas sobrenaturais, inclusive a do padre sem cabeça, mito nicaraguense que é a inspiração do conto. O que há de verdade ou não nessas histórias Letícia irá descobrir ao tentar fazer seu trabalho, com o desenrolar lembrando muito as já conhecidas lendas sobre seres sobrenaturais que habitam florestas e selvas.

A crueldade perpetuada pelo cartel mexicano Los Zetas é relatada por Vitto Graziano em Tamaulipas, com o ponto de vista alternando entre o de Pablo, o jovem e brutal comandante de uma das células criminosas, e o de uma de suas vítimas. Toda a violência e crueldade retratadas são os fios da teia de La Catrina, a famosa caveira símbolo do feriado Dia de Los Muertos. O revezamento entre dois olhares em posições opostas, porém na mesma situação, traz um elemento narrativo diferente se comparado aos demais contos até aqui.

Lucas Marchetti escreve Veludo Rosa e conta a história de Norma, uma jovem que trabalha como modelo e mora com sua namorada Lisa. O conto segue de maneira a explorar um dia comum num relacionamento normal entre as duas, até que em sua reta final temos um plot twist (não é spoiler) com relação a uma outra e peculiar maneira com a qual Norma ganha renda: nada de vender nudes ou pack de pezinho na internet, o que ela extrai e vende de seu próprio corpo está ligado a lenda dos andes peruanos El Pishtaco – que seria a personificação do massacre que os colonizadores espanhóis fizeram nos povos nativos.

O Sal nas Feridas da Terra, de Úrsula Antunes, também aborda um tema já trabalhado aqui: a escravidão. Pelos olhos de Clementine, vemos que ela e seus familiares, também escravos em uma fazenda da antiga colônia francesa São Domingos, começam a ver aparições de escravos dados como mortos a tempos. Usando como base o mito dos zumbis originário do Haiti, o texto se desenrola de maneira a trazer uma reflexão sobre o quanto vale a liberdade: um zumbi é quem voltou dos mortos, ou quem vive sob o julgo da escravidão?

Fechando o livro, Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos, de Lidia Zuin, remete a criação da linha A do metrô de Buenos Aires, a mais antiga de toda América Latina. Como quase toda obra de grandes proporções, principalmente nos primórdios do século XX, tragédias ocorreram pelas condições insalubres e inseguras nas quais os trabalhadores eram submetidos para conseguirem seu sustento. O conto é escrito de maneira a chamar atenção sobre como fatalidades podem ocorrer a qualquer momento da vida, sem qualquer preparo ou aviso.

Ao longo dos 20 contos, percebemos as diferenças presentes nas narrativas de cada um dos 20 autores, mostrando que não existe apenas um jeito de se contar histórias e cada autor utiliza seu próprio estilo para dar vida a diferentes entidades. No geral, Terrores Latinos é uma obra riquíssima, sendo bem eficaz no que se propõe: resgatar mitos e lendas latinos, muitos desconhecidos devido à falta de representatividade, inclusive por nós. A obra reforça ainda mais a diversidade cultural latino-americana, mostrando que nosso folclore não deixa nada a desejar para os mitos estrangeiros europeus e norte-americanos, que sempre são os mais representados nas mídias, e temos muito mais a oferecer do que apenas a famosa caveira mexicana. Terrores Latinos também vai além do sobrenatural e fantástico, apresentando os horrores dos problemas muito reais que a América do Sul já enfrentou e ainda enfrenta, como cartéis de drogas, garimpo ilegal, milícias, exploração de mão-de-obra, abusos, violência, supremacia…. infelizmente, os mitos são os menos assustadores quando comparados com a realidade.

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