![]() Vermelho
Original:Vermelho Ano:2024•País:Brasil Autor:Paula Febbe•Editora: Darkside Books |
Baunilha. O sabor mais simples e comum dos sorvetes e bolos, aquele que é bom, mas não é marcante. Tradicional, convencional, até mesmo sem graça. Termo muito usado no submundo do BDSM, todos que não se aventuram a experimentar coisas fora do comum, alternativas e, na cabeça dos mais moralistas, escandalosas, são chamados de baunilha. O mundo dos fetichistas esconde muitos segredos, e engana-se quem pensa que é apenas sexo pervertido. Seus praticantes experimentam o prazer não apenas através do ato, mas também pela libertação, pelo alívio, por poderem se mostrar quem são por inteiro sem as amarras da sociedade. Um político poderoso que dá ordens e é temido por todos pode ter seu momento de liberdade e prazer enquanto implora para ser espancado por sua dominatrix nas posições mais humilhantes; uma mulher que sempre se mostra obediente e compreensiva pode apenas ser ela mesma enquanto humilha e tem os pedidos mais absurdos atendidos por seus submissos. O BDSM não é um lugar de máscaras e fingimento, muito pelo contrário. É justamente onde as máscaras caem e as pessoas podem se despir de todas as convenções sociais e serem reais por alguns momentos. Paula Febbe decidiu explorar esse submundo tão incompreendido e desnudar os pudores e segredos mais íntimos em uma narrativa perversa e visceral em seu novo livro, Vermelho.
Em quatro histórias interligadas, onde cada uma delas representa uma letra do BDSM (Bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo), os limites do desejo e prazer são desafiados de uma forma intensa e brutal, com personagens cheios de traumas e cicatrizes profundas. Na primeira história, intitulada Bem-vindo, Baunilha!, conhecemos um pouco da vida de Fernando. Enquanto criança, frequentemente apanhava de sua mãe caso fizesse algo que ela julgasse errado ou abaixo de seus padrões. Já adulto, é um narcisista da pior espécie, com raiva das mulheres e de tudo que elas representam, mas isso apenas no seu cotidiano. No mundo do BDSM, Fernando é um submisso conhecido por adorar ser espancado, preso e humilhado da forma que sua domme quiser e, por conta disso, é tido como um homem doce e frágil. Fernando era casado, e sua esposa sabia de suas práticas e aceitava isso, apesar de ela mesma ser maltratada por ele. Com a nova dominadora, Fernando ficou viciado na prática do Shibari – que consiste em ser amarrado com nós específicos – e, aos poucos, a tênue linha entre real e irreal começa a ser rompida.
Na segunda história, Dominatrix, temos um homem amarrado no porão de sua dominadora há horas. Músculos dormentes, vontade de ir ao banheiro, dor beirando ao insuportável. E um prazer indescritível, mesmo com o terrível odor de um cadáver apodrecendo no mesmo cômodo sem o seu conhecimento. Tudo em nome do prazer e do desejo. Aos poucos, diversos acontecimentos macabros vão se desenrolando, resultando em um verdadeiro caos impossível de largar.
Em Plug, uma lutadora de MMA perde uma importante luta e, em desespero, aceita trabalhar em uma casa secreta de prazeres que apenas os milionários mais pervertidos têm conhecimento. Ali, acontece de tudo. Realmente de tudo. Dinheiro não era problema, eles estavam à procura do que o mundo lá fora não poderia oferecer a eles. Não poder, isso eles já tinham. Precisavam satisfazer seus desejos, chegarem ao extremo, sentirem algo. Procuravam aventura, satisfação, dor. Tudo corre bem para a lutadora, apesar de atender aos pedidos mais bizarros. Até que as coisas saem de controle. O jeito que a autora explora aspectos psicológicos e do que o ser humano é capaz é perturbador, chocante e incrível. Essa definitivamente não é uma história para pessoas de estômago fraco.
Fechando a obra, temos Vermelho. Obedecendo à sua dominadora, uma mulher arranca os pelos de seu corpo e os conta, um por um. E isso é tudo que é possível falar dessa história sem comprometer a experiência. Vermelho é algo que não dá para explicar, apenas ler e sentir. E cada pelinho arrancado da personagem é como se fosse uma agulha cutucando nosso cérebro até o desfecho.
Paula Febbe, conhecida por seu estilo ousado e brutal de escrita, cospe a hipocrisia de casamentos e pessoas aparentemente moralistas, mostra que o BDSM é um lugar seguro, de libertação, não de julgamentos, mas também fala sobre os perigos dos extremismos, dissecando os impulsos mais sombrios do ser humano. Tentando fugir da dor psicológica, tentam infligir dor física cada vez mais, sem limites, querendo a todo custo anestesiar a realidade na qual vivem. A autora trabalha a tensão e o horror psicológico disso tudo de uma forma ímpar. Não é um livro sobre prazeres, é um livro sobre limites, sobre desejo, sobre maldade, sobre horror. Um erotismo macabro. A perversão descrita aqui não é simplesmente sexual, é sobre o corruptível, sobre a quebra da moralidade, sobre atitudes questionáveis. Mas questionável para quem? E até onde isso vai? Controle, consentimento, dominação. Há um limite? Essas são algumas perguntas que permeiam o livro, mas não espere respostas diretas. A proposta é incomodar, cutucar, provocar. Sendo vermelho a cor da paixão e do desejo, mas também do sangue, da carne, da violência, o título não poderia ser mais adequado à obra.
É uma leitura insana e perturbadora, cheio de cenas fortes e gráficas e, mesmo sendo curto, é cheio de reflexões poderosas e até mesmo subversivas. Aqui, o gore é cheio de significado, profundo. Na verdade, cada linha é assim. Simplesmente Febbe em seu ápice, mostrando o porquê de ser uma das vozes mais potentes do horror nacional atualmente.
Vermelho é transgressor, cru, perverso. Não é uma obra que simplesmente aborda os prazeres da carne, vai muito além. Há muito horror no prazer e muita beleza na dor. Entre no submundo de Vermelho apenas se estiver pronto para se despir de todos os pensamentos e comportamentos baunilhas; aqui, não há espaço para falsos moralismos, apenas a verdade nua, crua e dolorosa. E cheia de horror, é claro.