![]() Medusa
Original:Medusa
Ano:2021•País:Brasil Direção:Anita Rocha da Silveira Roteiro:Anita Rocha da Silveira Produção:Fernanda Thurann, Mayra Faour Auad, Vania Catani Elenco:Mariana Oliveira, Lara Tremouroux, Joana Medeiros, Felipe Frazão, Thiago Fragoso, Bruna G, Bruna Linzmeyer, Carol Romano |
Em um cenário de fundamentalismo cristão, jovens mulheres conhecidas como as Preciosas do Altar vestem máscaras e saem à caça de outras mulheres que consideram adeptas de um estilo de vida afrontoso a Deus. O grupo tem como principal inspiração um fato ocorrido na cidade tempos antes, em que Melissa (Bruna Linzmeyer), uma garota de espírito livre, teve o rosto desfigurado por uma religiosa. Quando uma das Preciosas, Mariana (Mariana Oliveira), assume como sua missão descobrir o paradeiro de Melissa, a jovem entra em uma busca que poderá destruí-la ou transformá-la.
Medusa (2021), o mais recente filme da diretora e roteirista Anita Rocha da Silveira, esboça uma realidade distópica que, no Brasil pós-ascensão ao poder da extrema direita, parece sempre logo ali na esquina. Eu digo “esboça” porque Anita consegue inteligentemente fazer uso de pequenos detalhes, acenos e recortes a fim de passar uma noção do todo. As pichações nos muros, a programação da tevê, movimentações furtivas na escuridão das ruas e a naturalização de alguns comportamentos, bem como a punição violenta a outros, sugerem um cenário muito mais amplo sem que este precise ser realmente mostrado em sua totalidade, o que tornaria a produção consideravelmente mais cara. Essa opção narrativa também força o espectador a acompanhar toda a história pelo ponto de vista das fundamentalistas, o que
gera, na mesma medida, incômodo e intimidade. Outra armadilha da qual Anita escapa é tornar a história séria e panfletária demais, e faz isso com a ajuda de um elenco afiado, do qual brota um humor inteligente e espontâneo.
O mito grego da Medusa é referenciado de diversas maneiras ao longo do filme. Uma delas é por meio do tema da beleza feminina perdida, seja pelas queimaduras no rosto de Melissa, pelas cicatrizes que Mariana vai acumulando ao longo de sua jornada ou pelos hematomas de sua amiga Michele (Lara Tremouroux). A partir do momento em que Mariana também tem a integridade de seu rosto comprometida – e por esse motivo perde o emprego numa clínica de estética -, ela decide preencher o vácuo em sua vida encontrando Melissa, uma mulher cuja face está mais destruída do que a sua. E isso remete a outro aspecto da história da Medusa: o mal cometido por mulheres contra outras
mulheres.
No mito, Medusa é uma jovem que, após ser estuprada por Poseidon em um templo de Atena, é transformada por esta (uma deusa casta) em uma criatura com cabelos de serpentes e capaz de petrificar os humanos que ousam olhar para seu rosto. Assim como Medusa, Melissa também foi punida por supostamente macular o que é divino, e, em tempos em que se fala de sororidade, sua agressora e as Preciosas do Altar representam exatamente o oposto desse termo. Elas são reflexos de uma sociedade patriarcal que cria prisões comportamentais e ideológicas para as mulheres com o objetivo de controlá-las, prisões que as próprias mulheres então passam a reproduzir entre si.
Após a metade, a história de Medusa perde bastante o foco. Há elementos que não são bem explorados, como a personagem que chega à cidade, Clarissa (Bruna G), que no início promete um arco interessante, mas termina sem qualquer relevância para a trama. Outro elemento são os apagões elétricos, cuja única função é servirem de motivo para Mariana ter que dormir no emprego em determinada noite. O filme derrapa também na tentativa de deixar a busca de Mariana mais surreal, adicionando momentos desconexos e vazios que mais parecem cenas que o montador esqueceu de cortar, e que tornam sua duração mais longa do que deveria.
Por sorte, na reta final, Medusa retoma seu caminho ao assumir de vez sua vocação cômica. Na estética do filme nota-se uma grande influência das cores fortes de Dario Argento, embora também esteja em sintonia com uma tendência atual que vem sendo batizada de “neon horror”, e que pode ser vista em Demônio de Neon (The Neon Demon, 2016), Clímax (Climax, 2018), Mandy: Sede de Vingança (Mandy, 2018), Boca a Boca (2020), entre outras obras. Já a trilha sonora de Bernardo Uzeda deve muito a John Carpenter. Também vale a pena destacar o uso inusitado de músicas pop famosas, algumas delas com a letra alterada para virarem canções gospel cantadas pelas Preciosas do Altar.
Transitando por diversos gêneros, Medusa é um filme envolvente, engraçado, assustador em alguns momentos e que tem os olhos bem abertos para um Brasil infelizmente muito possível. Espero que, ao contrário dos olhos da Medusa grega, estes façam o espectador sair da paralisia.