
![]() A Vespa
Original:The Wasp
Ano:2024•País:UK, EUA, Canadá, Finlândia Direção:Guillem Morales Roteiro:Morgan Lloyd Malcolm Produção:Nate Bolotin, Maxime Cottray, Leonora Darby, James Harris, Matthew B. Schmidt, Sean Sorensen Elenco:Naomie Harris, Natalie Dormer, Dominic Allburn, Jack Morris, Leah Mondesir-Simmonds, Olivia Juno Cleverley, Rupert Holliday-Evans, Sally Goodman, Jake Donald-Crookes, Naomi Richards |

Insetos sempre foram ótimos confidentes do horror. No cinema, eles não entram em cena como curiosidades biológicas, mas como versões aladas de traumas que ninguém quer nomear. O terror já transformou abelhas em feridas históricas em O Mistério de Candyman (Candyman, 1992), criou pragas delirantes em O Enxame (The Swarm, 1978) e deixou medos podres rastejarem em Possum (Possum, 2018). Até o corpo humano já se viu traduzido em mutação grotesca em A Mosca (The Fly, 1986). Dentro desse ecossistema simbólico, uma vespa seria a escolha precisa: pequena, insistente, venenosa, perfeita para representar mágoas que parecem inofensivas até pousarem no lugar certo. É esse ferrão emocional que Guillem Morales tenta cravar aqui.
A Vespa se acomoda na tradição dos thrillers de confronto íntimo, parentes diretos de Louca Obsessão (Misery, 1990) e O Presente (The Gift, 2015), histórias onde duas pessoas presas no mesmo espaço desafiam o passado e desmontam uma à outra no ritmo de quem sabe exatamente onde apertar para machucar. Também ecoa a distorção afetiva de Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, 1966) e Almas Gêmeas (Heavenly Creatures, 1994), além do veneno de sala fechada de Deus da Carnificina (Carnage, 2011). É um tipo de horror que não depende de susto, mas de crueldade emocional; uma violência que não explode, infiltra.

A narrativa apresenta Heather (Naomie Harris) e Carla (Natalie Dormer), duas amigas separadas por anos de silêncio e escolhas tortas, reencontrando-se para um chá que nunca foi sobre chá. Heather veste conforto e ressentimento com o mesmo cuidado. Carla carrega a vida nas costas como quem aprendeu a sobreviver com pouco ar. Desse reencontro nasce um pedido absurdo, quase ritualístico, que revela o quanto o passado insiste em sobreviver mesmo quando a gente jura que o matou. Adaptado da peça The Wasp, de Morgan Lloyd Malcolm, o filme mantém o confinamento teatral como motor e aposta no desconforto que cresce no intervalo entre uma xícara e um segredo.
Guillem Morales sempre respirou melhor dentro do psicológico do que do sobrenatural, e isso transparece. Seu histórico em O Habitante Incerto (El Habitante Incierto, 2004) e no excelente Os Olhos de Júlia (Los Ojos de Julia, 2010) mostra como ele gosta de filmar casas como organismos inquietos. Aqui não é diferente. A residência onde Heather e Carla se encaram funciona como uma extensão emocional: paredes que escutam, janelas que julgam, corredores onde o ar pesa. Morales entende que, no terror íntimo, a arquitetura é cúmplice.
A atuação é onde mora o brilho do longa. Naomie Harris vibra numa vulnerabilidade que nunca pede desculpas; ela deixa trincas controladas, suficientes para o espectador enxergar o que ela tenta esconder. Natalie Dormer, por sua vez, assume a narrativa com aquele sorriso que dispensa avisos. Ela aumenta a temperatura sempre que entra em cena, sem nunca perder a elegância da ameaça. As duas criam um campo magnético que sustenta o filme mesmo quando a trama hesita.

E ela hesita. O longa nem sempre consegue escapar da rigidez teatral; alguns diálogos se estendem como quem não quer largar a explicação, e certos símbolos surgem com entusiasmo demais, como se não confiassem na inteligência do público. Há viradas que se anunciam cedo e chegam sem o impacto que prometiam. O veneno existe, mas às vezes escorre mais devagar do que o necessário. Ainda assim, Morales acerta quando abraça a lentidão venenosa do texto. Ele filma o reencontro como um ritual de dissecação emocional. É um horror de combustão lenta, onde os monstros são escolhas antigas e os gritos nunca chegam a se formar.
Porém, é no terceiro ato que o filme perde o impulso que vinha construindo. A história chega ao ponto de ebulição, mas Morales parece preso demais à ossatura teatral da peça, como se hesitasse em deixar o cinema fazer o que o cinema faz de melhor. O resultado é um desfecho que acena para a catarse, mas nunca a entrega, como se a narrativa tivesse medo de expandir seu próprio veneno. O famoso recurso da pista e recompensa, tão vital nos thrillers narrativos, aparece aqui de modo tímido. As pistas estão todas ali, colocadas com vontade, porém a recompensa emocional não acompanha; o clímax surge sem aquele estalo que deveria reorganizar tudo o que vimos, e o impacto se esvai como um sussurro antes do ponto final.
Esse tipo de fragilidade dialoga, curiosamente, com o que a própria história do teatro sugere. A peça A Ratoeira, de Agatha Christie, por exemplo, sobrevive há décadas porque, mesmo sendo rígida na forma, domina a lógica do suspense, aquela cadência onde cada elemento, por menor que seja, volta como revelação, reviravolta ou golpe final. No filme Veja Como Eles Correm (See How They Run, 2022), quando um personagem desdenha dizendo que A Ratoeira não teria longevidade porque “se você viu um mistério, viu todos”, a resposta está justamente na resistência da obra: ela funciona porque entende profundamente o pacto entre texto e público. Christie sabe plantar, sabe adiar, sabe recompensar; o prazer está no jogo, e no jogo bem jogado.

A Vespa poderia ter aprendido mais com esse tipo de adaptação teatral que encontrou vida nova no cinema. Falta-lhe a elasticidade que algumas transposições dominam tão bem, aquela liberdade de transformar uma cena estática em tensão dinâmica, ou de reimaginar um diálogo como uma engrenagem narrativa que prepara o terreno para o golpe seguinte. No terceiro ato, o filme parece confiar demais na força das emoções e de menos na estrutura dramática que poderia sustentá-las. O texto se dobra sobre si mesmo, repete intenções, deixa o conflito estagnar quando deveria escalar. Assim, resta a sensação de que há potência ali, mas ela evapora antes de queimar. O horror não vem de fora, mas daquilo que foi semeado entre aquelas duas mulheres; porém, quando esse horror finalmente precisa amadurecer, o filme recua onde deveria atacar. E essa escolha, mais do que estético-dramática, acaba impedindo A Vespa de alcançar o tipo de clímax que poderia colocá-lo ao lado das grandes histórias de confronto psicológico que o cinema já abraçou.
No fim, A Vespa é sobre vínculos deformados, sobre memórias que sobrevivem na surdina e sobre o doce prazer de alimentar pequenos ódios até que eles ganhem forma. Não é um filme explosivo; é um bom filme que incomoda devagar, como a ferroada que você só percebe quando já inflamou. Tem talento, tem atmosfera, tem momentos de brilho, mas não perfura tão fundo quanto pretende. O veneno está lá. Só faltou ferir com mais precisão.





















