por Mariane Conte
Sentindo o coração pulsar na lateral do pescoço, Sheila recebeu a pasta amarela como se a mesma fosse o corpinho mole e áspero de um filho recém- nascido.
— Seus desenhos são mesmo uma beleza — concluiu o Editor, aquele homem pálido, de barriga redonda e de olhos fundos — No entanto, eu sinto muito. A ideia de um livro de fantasia para adultos…
— Não é um simples livro de fantasia. É real. Te mostrei os desenhos, são totalmente fiéis e…
— Duendes! Simplesmente duendes malucos vivendo no jardim da vovozinha! E como pretende provar uma coisa dessas? Veja, espero que entenda, você é talentosa e muito imaginativa, tenho de admitir. — Ele bufou, afastando justificativas com um gesto vago de mãos. — Sinto muito, mas minha definitiva será não.
Enquanto caminhava pelo corredor rumo ao elevador, evitando chorar na frente de estranhos, Sheila jurou que aquela seria a última vez que colocaria os pés em uma editora.
Horas mais tarde, encontrou-se descalça no quintal dos fundos, tremendo até os ossos.
O jardim que tinha diante de si era tão antigo e real quanto ela, uma herança deixada pela avó grega juntamente da casa de varanda ampla, pintada de branco para combinar com a alta cerca de madeira. Durante décadas a avó fora vítima de comentários injustos e por vezes fantasiosos graças ao jardim maravilhoso, ao pomar sempre em frutos, aos elogios de desconhecidos que vinham de toda a parte apenas para vislumbrar sua horta de cenouras gigantescas, tendo de lidar com crianças enxeridas que espionavam-na nas idas e vindas do mercado, cantarolando acusações de “bruxa! Bruxa! Por favor, não transforme meu irmãozinho em um sapo!”
Fechando os olhos e respirando profundamente o aroma adocicado do jardim e da noite azulada, enchendo os pulmões com o ar fresco e intenso, Sheila secou as lágrimas que escorriam pelo queixo, admitindo que aquelas eram sim lágrimas de rancor e infelicidade.
Galhos revoltosos de todos os tamanhos balançavam endoidecidos acima de sua cabeça. Então, com o coração batendo depressa, ofereceu-lhes o que um humano possuía de mais valioso.
Na manhã seguinte, cerca de nove quarteirões de onde Sheila Kouris se encontrava, ainda vestindo pijamas, parada diante de uma pilha de moedas de ouro sobre o capacho da porta da frente, o Editor saboreava uma deliciosa vitamina de abacate — fato que a esposa julgou inacreditável, pois o marido odiava abacate —, momento esse em que ele sentira dentinhos cravarem-se em um de seus tornozelos.
— Jesus Cristo!
O homenzarrão grunhiu, estapeando a própria coxa. Ficou naquilo por segundos, saltando de um lado para o outro, bem no meio da cozinha.
— Querido? — Surpresa com a cena e acreditando que a brincadeira estava indo longe demais, a esposa pôs a xícara de lado — Querido, o que deu em você essa manhã? Ei, eu estou falando com você!
Sem responder, mas dando tapas violentos contra as costelas, o homem correu para fora da cozinha, sendo capaz de ouvir a voz enjoada da esposa enquanto atravessava aos trancos a sala de TV.
— Me soltem! — Exclamava, dando pulinhos. — Soltem já! Fora! Fora!
Ele mirou as escadas e começou a subir, a mão direita deslizando pelo corrimão enquanto a esquerda estapeava o rosto gorducho. Tinha o coração descontrolado, os olhos arregalados e um grito preso no fundo da garganta. Não queria acordar as meninas para que então as filhas o vissem fora de si, imundo de suor e tendo alucinações. Quando alcançou o topo, as meias escorregaram no assoalho, ele patinou — estava fora de forma —, e caiu como um boneco cheio de areia lançado de uma janela do décimo quinto andar. Uma queda violenta, tão rápida que sequer teve tempo de encolher a língua.
Ele esperneou, deitado de bruços. Continuavam a mordiscar as suas costas e quadris — nhac, nhac. A gravata estava enroscada embaixo do corpo e o apertava na garganta, sufocando. Não podia engolir o que enchia-lhe a boca daquele gosto horrendo e cruel, por isso espichou o pescoço e ficou olhando por algum tempo para a pequena poça de saliva e sangue que se formava — nhac, nhac, sem parar.
— Querido, você está mesmo bem? — Ouvia a voz da esposa chamando, lá embaixo, e um de seus últimos pensamentos foi de que estava começando a odiá-la tremendamente.
Abriu a boca e cuspiu repetidas vezes, descobrindo que a ponta da língua estava solta, pendurada feito um pedaço idiota de presunto. Fazendo esforço, virou-se de barriga para cima, gemendo de dor e de medo. Levantou a cabeça, devagar, temeroso de que tivesse perdido mais do que apenas a ponta da língua. Foi então que os viu com clareza absoluta, estavam sobre ele, agarrados em suas pernas e pés, mordendo o dedão, beliscando a panturrilha.
Ela havia feito um excelente trabalho, aquela Kouris, refletiu o Editor. Pensando melhor, vendo-os de perto e sentindo-os como estava —rindo, uma das criaturinhas arrancou fora uma de suas meias, girando-a acima da cabeça —, era como se olhasse por mais uma vez para aquelas ilustrações infantis do dia anterior: duendes de pele verde-escuro, homenzinhos nus de dentes afiados e queixo comprido, tão maldosos que somente alguém com capacidades de outro mundo teria a sorte de vê-los e sobreviver para escrever uma história.
Uma linda história de horror.