“Por toda a parte escrito em fogo eterno, inferno, inferno, inferno, inferno, inferno…” – Cruz e Souza
Foi no mês de maio do ano de 1265 que nasceu, na cidade de Florença, Dante Alighieri. Era então uma época um tanto sombria para os Homens, as camadas mais pobres das sociedades estavam mergulhadas num cego fanatismo religioso, manipuladas pelo poder absoluto da igreja católica.
Neste tipo de mentalidade, quase tudo era pecado, e o pecado propriamente dito levava à morte e à condenação eterna. Para o cristão devoto havia a esperança da salvação num futuro “paraíso“, mas para o pecador desobediente dos preceitos da igreja haviam as chamas do fogo do “inferno” como castigo eterno! Desta forma os Homens viviam oprimidos pela pobreza desta vida e pelo medo de ir para o inferno após a morte…
Dante é deste período de “trevas” em que estava mergulhado o povo, época em que ainda reinava uma forte confusão entre cristianismo e paganismo, Deus e Diabo, na mente das pessoas. Os tempos eram tão difíceis quanto hoje no nosso mundo contemporâneo. Naqueles dias os Homens também estavam mergulhados em sangrentas guerras denominadas Cruzadas e a extrema violência era praticada em nome da cruz, instrumento cruel de tortura, martírio e morte usado pelos antigos romanos.
Dante foi o poeta florentino que, soube interpretar profundamente o seu próprio tempo, escrevendo uma obra gigantesca denominada “A Divina Comédia“. É nesta obra que está refletida as experiências dos Homens, seus medos, seus sofrimentos, suas dores, seus terrores e no meio de todos estes martírios está a incessante busca pela serenidade do espírito…
Foi necessária esta pequena reflexão histórica para podermos agora, iniciarmos um dos mais medonhos caminhos até então trilhados somente por Dante e Virgílio, em particular apenas o inferno…
E por que somente o Inferno? Perguntarão os senhores um tanto assombrados. Responderei esta pergunta no decorrer do texto…
Foi pelo caminho da vida em meio à uma selva escura que Dante perdeu-se pela noite, depois em companhia de Virgílio ambos chegam à Garganta do Inferno:
“Por mim se vai das dores à morada. Por mim se vai ao padecer eterno. Por mim se vai à gente condenada.”
Agora mergulhados no profundo abismo encontram um sinistro rio subterrâneo… Lá vem Caronte, o velho barqueiro do Rio Aqueronte, o rio que leva as almas ao inferno. Remando sua lúgubre barca como um profeta, ele é o prelúdio de uma ida sem volta, para a condenação aos mais medonhos sofrimentos. Ai de ti mortal, ao embarcar nesta gôndola sinistra, nunca mais voltará a ver a luz do sol novamente!
E a barca então atravessa o rio onde já estão dezenas de almas atormentadas tentando agarrarem-se nas beiras da barca inutilmente…
Imagem impressionante. Inspirou grandes artistas a retratar o apavorante episódio pós morte, e várias foram as expressões pintadas!
Miguelângelo, artista da renascença, pintou esta mesma cena na Capela Sistina em Roma. Este, impregnado pela visão dantesca do sinistro Caronte, expressou o horror de forma descomunal, o drama desesperador das figuras impressiona até os mais leigos em matéria de artes plásticas!
Mais tarde o pintor Delacroix, artista do movimento romântico, também impregnado pelo mesmo fascínio sobrenatural, inspira-se na mesma cena intitulada A Barca de Dante, quadro sombrio de aspecto atormentado. Foi uma de suas melhores obras do gênero.
“Caronte, os ígneos olhos revolvendo, lhe acenava e a todos recebia, remo em punho, as tardias vai batendo…”
Dante desmaiado segue na barca o seu curso assombrado em direção aos poços do inferno… E que verso poderia estar escrito nos portais do inferno?
Duras palavras que desmoronam sobre a vaidade humana afirmando o terror absoluto onde a dor será o ingrediente principal desta jornada:
“Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
Seguindo sempre para o além, mais ainda descendo por lúgubres cavernas rochosas até o outro extremo da margem do rio, Caronte deixa os dois poetas em solo firme e novamente segue remando sumindo-se na densa escuridão do rio…
Ambos então são despertados por trovões potentes e ao abrirem os olhos encontram-se na primeira orla do círculo infernal onde se tem grande surpresa!
Nesta atmosfera de deprimente melancolia, sobre pedras dos mais variados tamanhos estão os grandes da Antiguidade: Homero, Horácio, Lucano, Ovídio, Heitor, Platão, Sócrates, Tales, Zeno, Diógenes, Sêneca, Ptolomeu, Galeno, Heráclito, e tantos outros!
“Deste profundo sono fui tirado, por hórrido estampido, estremecendo, como quem é por força despertado…”
“Quem não pecaram: boas obras tendo, acham-se aqui, faltou-lhes o batismo, portal da fé, em que és ditoso crendo.”
Dali partindo em direção ao círculo segundo, Dante e Virgílio caminham e deparam com Minos, o Juiz Supremo do Inferno, que tem por ofício julgar as penas a cada alma de acordo com seus pecados…
“Desci desta arte ao círculo segundo, que o espaço menos largo compreendia, onde o pungir da dor é mais profundo!
Profundo é o reino para o qual mergulhas, onde os lacívios e luxuriosos pecadores são arremessados por fortes refregões de ventanias tempestuosas! “
Desce agora ao terceiro círculo da orla do inferno, onde existe uma chuva perpétua de água, granizo e neve. Ali no limiar do desespero todos os gulosos estão prostrados e estes dilacerados pelos dentes e unhas pontiagudas do Cérbero, um horrível monstro com o corpo de um dragão e três cabeças de cão raivoso! Horror dos horrores!
Sempre descendo cada vez mais no profundo, no tormento e na dor, Dante e Virgílio, impressionados com tanto horror, deparam-se com Plutão no quarto círculo do inferno!
“Pape Satan, pape Satan, allepe: Plutão com rouca voz, ao ver-nos brada, para que eu do conforto não discrepe.”
“E, pois que o quarto círculo se abria, mais penetramos pela estância horrenda, a que todo seu mal o mundo envia.”
Aqui estão os avarentos e os pródigos condenados ao penoso trabalho eterno de fazer rolar para cima pesadas sacas e de tocar ímpias injúrias!
Consumindo-se em terríveis fadigas perpétuas estão nesta orla todos os gananciosos do mundo!
E como se entoassem trombetas apocalípticas seguem Dante e Virgílio seu curso, assombrados…
Então um lúgubre pântano surgiu numa atmosfera de tormento onde as almas dos iracundos, invejosos, soberbos e orgulhosos volviam-se afogados na ardente lama que dava às margens do Rio Estige.
“Enquanto assim corremos, eis me soa de lutulenta sombra voz que exclama: – Quem és que vem em vida para a lagoa?”
Então novamente em outra barca, esta agora do demônio Elegias, os dois poetas atravessam o horrendo pântano até a cidade de Dite, e novamente na beira da barca, mãos desesperadas tentam agarrar-se inutilmente para salvar-se do tormento!
Chegando aos portais da rebelde cidade, muros de labaredas de fogo contornam o seu grande centro! Ali monstros, fúrias e a Medusa são a grande ameaça aos dois visitantes…
“Lá o aspecto se erguia horripilante, de fúrias três, de sangue eram tingidas, feminis no meneio e no semblante.”
“Co’as unhas cada qual rasgava o seio, com seus punhos batiam-se, em tal brado, que ao vate me acerquei, de pavor cheio.”
“Olhando-me dizia – transformado em pedra seja por Medusa; o assalto do ímpio Perseu não foi assaz vingado.”
Aqui nesta horrenda cidade infernal mais terríveis são as penas onde os culposos são de gravíssimos delitos cometidos em vida!… E após a chegada de um anjo celeste, Dante e Virgílio são salvos destes monstros mitológicos. Medusa, horrenda figura com seus cabelos sobre formas de serpente e as hidras verdes afastam-se, as portas se abrem, entram Dante e Virgílio…
O compositor Franz Liszt, que também era um filósofo e profundo conhecedor da obra de Dante, ao ler A Divina Comédia, inspirou-se imediatamente a compor uma sinfonia a qual intitulou Sinfonia Dante. O ritmo é atormentado, como a própria trajetória que fizemos até os portais da infernal cidade de Dite.
Liszt captou o horror do inferno num ritmo sinfônico pesado onde a todo instante trombetas diabólicas anunciam o novo círculo da orla infernal!
Ao ouvir a Sinfonia Dante, seja de olhos abertos ou fechados, o efeito medonho é o mesmo, e este é carregado por uma atmosfera pestilenta de terror…
Mas a sinfonia discorre com notas em perfeita harmonia, os tambores ressoam ao fundo, os violinos com suas delicadas dissonâncias completam o cenário da obra! Assim o inferno dantesco foi transcrito para a música pela genialidade de Franz Liszt, compositor húngaro.
Mas é lá nos “quintos do inferno” em que nós estávamos, levados por Dante e Virgílio, nos portais da cidade de Dite…
Recomeçando a hórrida peregrinação, os dois poetas deparam-se com os heréticos ardendo em sepulcros de fogo. Adiante, os brutos, amantes da violência, afogam-se incessantemente nas correntezas de um rio rubro de sangue, e ao simples levantar de suas cabeças atormentadas para o alívio da respiração, são atingidos por setas pontiagudas dos arcos dos truculentos centauros, monstros que tem metade do corpo em forma de cavalos e outra metade humana. Estes vigiam os desgraçados…
Adiante e sempre para baixo, percorrendo agora as partes internas da cidade maldita, chegamos ao vale sequioso dos suicidas onde em envergadas árvores repletas de fungos e nódoas gosmentas, transformam-se os corpos destes ousados que deram um fim em suas próprias vidas…
“Ó, ira louca, ó ambição, que impele, na curta vida nossa, ao inferno arrasta, e para sempre nos submerge nele!”
“No espaço, a que o penhasco é sobranceiro, centauros correm, setas agitando, como soíam no viver primeiro.”
“Aos mil em volta ao rio sanguinoso, as almas seteavam, que excediam, mais do que é dado, o líquido horroroso.”
Das árvores do vale que no fundo eram as almas dos suicidas, as folhas que brotam com o passar do tempo são imediatamente devoradas por harpias, outra espécie grotesca de monstro mitológico!
Já num outro compartimento, cães famintos devoram os esbanjadores e delapidadores dos próprios bens, numa sempre pavorosa cena de terror!
“Pois disse-me: ‘De um tronco se quebrares um só raminho, ficarás ciente deste erro em que se enleiam teus pesares'”
“Fui homem, hoje o lenho, que estás vendo! Mais compassiva a tua mão seria se alma aqui fosse de um dragão tremendo.”
“Daquela árvore assim brotava a fala e o sangue; a minha mão já desprendera o ramo, e, entanto, o horror no peito cala.”
“Vai crescendo até ser árvore ingente: as harpias, que a fronte lhe devoram, causam-lhe dor, que rompe em voz plangente.”
Ai dos violentos contra Deus e a natureza! Estes ardem desesperados debaixo de uma chuva de fogo. Correm, gritam, e só as dores são as únicas realidades, debaixo de grossos pingos de labaredas acesas…
Passando por estes horrendos tormentos, Dante e Virgílio chegam ao sétimo círculo infernal sobre hórrido e obscuro precipício… Gerion, uma horrível fera alada, leva ambos ao fundo deste medonho abismo, onde penam os violentos contra as artes.
“Tem o inferno, de rocha construído, de férrea cor, do muro igual cercado. Um lugar: Malebolge, o nome havido.”
Agora já no oitavo círculo, este dividido em dez grandes compartimentos insalubres, onde cada pecador é atormentado das mais diversas formas, num crescente terror em pesada atmosfera de martírio.
Alcoviteiros são açoitados como Cristo antes da morte, e são os musculosos braços dos demônios quem executam a crucial tarefa até sangrar!
Os aduladores dos grandes e poderosos, são mergulhados de cabeça em estrumes mal cheirosos já no terceiro compartimento. Os simoníacos são espetados de cabeça para baixo em buracos estreitos, com os pés imersos em fogo. Adivinhos, vendilhões, debatem-se e caminham ao contrário sobre a mesma pena.
Já no quinto compartimento estão os trapaceiros inteiramente submersos. No sexto compartimento estão os hipócritas, muitos bóiam sobre piche a ferver em agonia eterna, misturados sem melhor definição de quem realmente é o culpado pelos pecados cometidos. Outros hipócritas caminham com pesadíssimas capas de chumbo grosso e dourado. No sétimo compartimento, ou poço das cobras, é este o mais dantesco, usando aqui a expressão medonha para dar sentido e entendimento ao horror…
“De serpes tal cardume se enroscava, horríficas na infinda variedade, que ao sangue, ainda ao lembrar, terror me trava.”
“Nem do mar roxo em pragas, nem no meio da Etiópia, tropel tão pavoroso, de flagelos jamais a lume veio.”
Aqui são lançados os ladrões, milhares deles padecem… e viram depois serpentes, e ao morder outros ladrões tornam-se humanos de novo e numa metamorfose hedionda, ficam ali sofrendo suas expiações…
No oitavo compartimento, chamas de fogo consomem os maus conselheiros, os semeadores de grandes escândalos e cismas, que são cortados por afiadíssimas espadas dos demônios no nono compartimento.
Chegando no décimo compartimento, deparam-se com cancerosos, febrentos, tumefactos, hidrópsos, toda sorte de chagas fétidas e doenças pestilentas sifilíticas, que carcomem os desgraçados deste poço do inferno numa cena de desespero eterno…
Horror dos horrores em medonhas imagens de dor!
“Oh! Morte! Um clama – acode aos desgraçados!”
Agora, penetrando em um dos mais profundos círculos do inferno, e aqui já não há fogo, nem monstros, nem legiões de demônios, nem gritos de almas perdidas, só existe gelo, enormes blocos gelados repletos de vítimas imersas na estrutura extremamente fria… Ali estão os traidores em uma das extremidades, o Conde Ugolino rói o crânio do inimigo, ao centro está Lúcifer, transformado numa figura com três bocas mastigando cada uma delas os três maiores traidores da história: Bruto, Cássio e Judas…
Eis o fim! Oh, humanidade pestilenta: estão imersos neste reino de dores todos aqueles que por ventura foram maus com os seus semelhantes! Agora, Dante e Virgílio começam a subir em direção ao centro da Terra… três longos dias durou o hórrido pesadelo!
O filósofo alemão Artur Schopenhauer, ao fazer o estudo da obra de Dante, escreveu uma importante observação a respeito. Observem este fragmento:
“Onde iria Dante procurar o modelo e o assunto do seu inferno senão no nosso mundo real? E, contudo, é um perfeito inferno que ele nos pinta. Ao contrário, quando ele tratou de descrever o céu e os seus gozos, encontrou-se em frente de uma dificuldade invencível, justamente porque o nosso mundo nada oferece de análogo.
Em lugar das alegrias do paraíso, viu-se reduzido a dar-nos parte das instruções que lhe deram os seus antepassados, à sua Beatriz e diversos santos. Daqui se deduz claramente que espécie de mundo é o nosso. O inferno no mundo excede o inferno de Dante.”
Esta clara observação de Schopenhauer personificou o inferno fazendo um paralelo onde de fato é o nosso mundo o verdadeiro inferno! O inferno na literatura ou na imaginação das pessoas tem um ‘não sei o quê‘ de real que só se encontra na vida real, assim, o terror, o medo e as desgraças não são frutos da imaginação humana, mas da realidade dos homens.
A visão profunda de Dante foi o fruto da introspecção e do entendimento do seu tempo, onde a superstição e a crença eram valores absolutos.
Na obra A Divina Comédia, Dante e Virgílio continuam a jornada, saindo do inferno do qual passamos a conhecer, indo agora peregrinar no “purgatório“, até chegar ao “paraíso“. Estudamos somente o “inferno“, que no fundo é o drama eterno da humanidade. Quanto a encontrar o “paraíso“, cabe a cada um buscá-lo…
Para se afirmar a realidade do inferno como terror absoluto, a dor é o ingrediente principal, mas bastaria também nossa reflexão olhando o mundo no prisma de um profundo pensador…
Lá está o mundo, a humanidade. As cidades e guetos repletos de mendigos doentes, marginais, criminosos. Lá estão os grandes hospitais das cidades repletos de desgraçados. Lá estão as cadeias e a expiação dos condenados. O submundo dos grandes subúrbios. O mundo negro do tráfico de drogas, as grandes guerras, incêndios, terremotos, pestes, genocídios, o submundo do sexo e das doenças. A fome e a miséria, tudo isso é o inferno! E por força é horror!
Como também observou o escritor Albino Forjaz de Sampaio:
“O inferno! Digam-me se Dante sonhou alguma vez com tamanho horror. E se para certas criaturas o destino não escreveu as letras fúlgidas, las ciate ogni speranza, voi chi entrate , de tremenda memória!”…
Saímos do Inferno de Dante bastante perturbados com tamanho horror. Horror tão profundo que Gustavo Doré soube muito bem captar ao ilustrar com seu talento as gravuras da Divina Comédia, edição de 1956, traduzida por José Pedro Xavier Pinheiro, a qual consultei para o ensaio deste texto que discorremos num só fôlego!…