Dentro da literatura policial, o gênero cozy é de longe o mais limpo e seguro. Caracterizado por assassinatos com pouco sangue, detetives não-profissionais excêntricos, jogos de raciocínio e estudo de personagem, o cozy tem como maiores expoentes a simpática velhinha Miss Marple criada por Agatha Christie, e Jessica Flecther, detetive amadora interpretada por Angela Lansbury nas doze temporadas da série Assassinato por Escrito. Hoje o cozy continua bem representado na literatura independente e em séries como Miss Fisher Murder Mysteries, disponível no Netflix.
No outro limite do espectro, temos o rape and revenge, o gênero mais brutal dentro da literatura policial e em especial no cinema. Filmes como Thriller: A Cruel Picture, A Vingança de Jennifer e Sedução e Vingança retratam sobreviventes de estupros que decidem se armar e buscar vingança contra aqueles que as violaram. Com esse tipo de premissa é impossível fazer um filme comedido, e a crueldade das cenas de violência sexual muitas vezes são intensificadas para justificar a barbaridade da vingança.
Em Big Driver (ou Gigante ao Volante, na tradução do livro original de Stephen King) Maria Bello interpreta Tess Thorne (Tessa Jean no livro), autora da série de romances cozy A Sociedade de Tricô de Willow Grove. As suas protagonistas são um grupo de senhoras que dividem seu tempo entre tricotar cachecóis e resolver assassinatos. King já apresentou dezenas de protagonistas escritores, mas o que diferencia Tess é o fato de que, ao contrário de personagens como Bill Denbrough (de It – A Coisa) ou Gordon Lachance (de Conta Comigo), ela não é uma autora consagrada de best sellers, mas vive modestamente e precisa fazer palestras para poder completar a sua renda.
E é voltando de uma dessas palestras que Tess é estuprada pelo Big Driver do título, um caminhoneiro gigante que a viola e estrangula. Acreditando que Tess está morta, ele a joga num túnel de esgoto junto com os cadáveres das suas vítimas anteriores. Mas Tess está viva, e consegue voltar pra casa onde, se recuperando física e mentalmente, planeja sua vingança. Sua vida então salta do mundo aconchegante e excêntrico do cozy para a violência sem limites do rape and revenge.
De uma forma ousada, e até perigosa, King faz uso da violência sexual para narrar não apenas a história de uma mulher em busca de vingança, mas também de uma escritora experimentando um gênero novo. Qualquer escritor que já tenha tentado produzir literatura em um gênero com o qual não é familiar pode se identificar com Tess na sua jornada distorcida para aprender as regras e funcionamento do rape and revenge. Isso fica mais claro no filme do que na novela, especialmente no diálogo final de Tess com a personagem principal da Sociedade de Tricô de Willow Grove.
Por se tratar de um filme feito para a TV (o roteiro é de Richard Christian Matheson, filho do grande Richard Matheson) a adaptação economiza na violência gráfica e cenas de nudez, mas, ainda assim, funciona bem dentro dos seus limites. Maria Bello está ótima como sempre no papel principal, e trabalha a transformação da personagem de uma maneira fantástica. O elenco ainda conta com a vencedora do Oscar Olympia Dukakis, como a líder do Clube de Tricô de Willow Grove, e a vocalista do The Runaways, Joan Jett, que demonstra bom talento dramático.
É impressionante como mesmo em uma história menor Stephen King ainda é capaz de explorar gêneros já batidos com um ponto de vista único. Na novela original de Big Driver, disponível no livro Escuridão Total Sem Estrelas, o autor foi capaz de entrar na cabeça feminina e retratar toda a paranoia na mente de uma vítima de estupro. Acostumada a planejar assassinatos nos seus livros, Tess logo percebe que matar alguém no mundo real é muito mais difícil, e precisa se adaptar para continuar viva.
Mesmo sendo um produto menor de Stephen King, que de maneira alguma figura entre suas melhores novelas ou adaptações, a trama de Big Driver se destaca por trabalhar os dois extremos do espectro da história policial de maneira inventiva. Para um escritor com mais de quarenta anos de carreira, e que alguns acusam de estar no piloto automático há tempos, King demonstra sutilmente que tem, e sempre terá, formas novas de contar histórias. E que sempre terá algo novo a dizer sobre escrita.