À Meia Noite Levarei Sua Alma
Original:À Meia Noite Levarei Sua Alma
Ano:1964•País:Brasil Direção:José Mojica Marins Roteiro:José Mojica Marins Produção:José Mojica Marins Elenco:José Mojica Marins, Magda Mei, Nivaldo Lima, Valéria Vasquez, Ilídio Martins Simões |
O sádico e cruel coveiro Zé do Caixão pretende gerar um filho perfeito para dar continuidade a sua linhagem. Como sua mulher não consegue engravidar, ele acaba violentando a esposa do seu melhor amigo. Desconsolada, a jovem estuprada se suicida, mas logo depois regressa do mundo dos mortos para buscar a alma de Zé do Caixão.
“O maior clássico do cinema fantástico brasileiro”
Ainda adolescente, Mojica trocou sua bicicleta por uma câmera de vídeo 8 mm. Deste momento em diante começou a filmar compulsivamente. Primeiro com os pais, depois com os amigos e as namoradas, posteriormente com seus alunos; as dificuldades e o pouco dinheiro sempre compensados pela dedicação e criatividade. Contudo, por muito tempo o amor pelo cinema não seria financeiramente correspondido.
Foi em 1963 que teve um sonho, na verdade um pesadelo que definiria todo o seu futuro cinematográfico. Neste pesadelo Mojica era perseguido e arrastado por um homem de capa preta e cartola em direção a um túmulo onde estava gravado o seu nome e a data de sua morte. Do inconsciente de José Mojica nascia o personagem que seria, com o passar dos anos, imortalizado como o maior vilão do cinema brasileiro: o agente funerário Zé do Caixão.
O primeiro longa protagonizado pelo personagem foi rodado neste mesmo ano de maneira quase amadora, mas com um resultado excepcional: o cineasta e seus seguidores (na verdade alunos de sua escola de atores) emprestaram vários móveis, quadros e objetos de amigos, construíram o cenário que incluía um macabro cemitério com túmulos de papelão, semearam uma floresta com arbustos roubados de uma praça no Largo do Arouche. Em um pequeno estúdio no centro da capital paulistana Mojica filmou o primeiro clássico do gênero fantástico tupiniquim, À Meia-Noite Levarei Sua Alma.
O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência.
Estas poucas palavras definem a filosofia que conduz o comportamento do personagem Zé do Caixão nos 90 minutos de filme. Para o leitor não-iniciado, Zé do Caixão não é um fantasma ou um ser sobrenatural, como muitos pensam. Zé, em À Meia-Noite Levarei Sua Alma é apenas um descrente obsessivo, um personagem humano que não crê em Deus ou no diabo. À Meia-Noite Levarei Sua Alma é o primeiro capítulo da trilogia que narra a saga do personagem, seguido por Esta Noite encarnarei no Teu Cadáver (1966) e por A Encarnação do Demônio, rodado em 2007. Curiosamente estas são as únicas produções em que Zé aparece como um ser “real” e não uma alucinação ou uma entidade desconhecida.
É sempre importante entendermos as dificuldades que marcaram a conturbada trajetória do cineasta José Mojica Marins. Quando realizou, em 1963, o filme de estreia de seu personagem, Mojica já tinha em seu currículo diversos curtas e médias metragens, além de dois longas, o bangue-bangue Sina de Aventureiro (1958) e o drama Meu Destino em Tuas Mãos (1962). Na época possuía também uma escola para atores da qual saía o sempre pronto e dedicado elenco de seus filmes, localizada no tradicional bairro paulistano do Brás. Além das limitações financeiras, Mojica encontrou outros problemas durante o lançamento de À Meia-Noite Levarei Tua Alma. Graças à sequência em que Zé do Caixão devora um pedaço de carneiro numa Sexta-Feira Santa, o diretor atraiu a indignação dos grupos católicos brasileiros, que tentaram de toda forma impedir que o filme fosse lançado em circuito comercial. Felizmente, À Meia-Noite Levarei Tua Alma conseguiu sua distribuição, ainda que num número reduzido de salas.
Após o impacto inicial, tanto o público quanto a crítica acabaram divididos, uns reconhecendo a genialidade do cineasta, outros a insanidade. Provavelmente ambos estivessem certos. O filme ganhou alguns prêmios pelos festivais onde foi exibido, como o reconhecimento pela originalidade concebido pela revista francesa L’Ecran Fantastique e a Premiação Especial no Festival de Cinema Fantástico de Sitges. Como todos sabem, o reconhecimento verdadeiro só viria com o passar dos anos, mais exatamente na década de 90, quando ocorreu o lançamento de sua obra nos Estados Unidos (por uma distribuidora especializada em filmes trash chamada Something Weird).
Mais sobre Zé – o personagem.
O sádico Zé do Caixão é temido e odiado por todos os habitantes da pequena cidade onde vive. Numa ação de afronta aos fanáticos religiosos da região, o agente funerário faz questão de comer carne numa Sexta-feira Santa e passear pelo cemitério durante a noite dos Mortos. Zé do Caixão é ainda obcecado em conseguir gerar o filho perfeito que possa dar continuidade ao seu sangue. Ironicamente sua mulher não é fértil e o coveiro vê na noiva de seu único amigo a mulher ideal que tanto procura. Sem poupar esforços, Zé do Caixão então espalha a morte, a covardia e a desgraça por onde passa, sempre em busca da perpetuação de sua linhagem. Futuramente, José Mojica Marins definiria melhor a origem de seu personagem. Segundo o seu criador, o verdadeiro nome do coveiro Zé do Caixão seria Josefel Zanatas (anagrama da palavra Satanaz). Josefel viria de uma família rica, dona de uma grande rede de funerárias. Sofreu muito quando criança, pois quase não tinha amigos devido à mórbida profissão dos pais. Ótimo aluno, tinha nos livros seus únicos companheiros na escola. Entretanto, foi lá que acabou conhecendo Sara, de quem se tornou grande amigo. Cresceram juntos e a amizade tornou-se amor. Já adultos, ficaram noivos e planejaram casar fora do país. Mas uma grande tragédia acabou adiando o casamento: um acidente aéreo que resultou na morte dos pais de Josefel e de Sara, que viajavam juntos ao exterior onde antecipariam preparativos para o casamento. Era agosto de 1943 e em decorrência da Segunda Guerra Mundial criava-se a FEB (Força Expedicionária Brasileira). Josefel então se alistou, e decidiu que o casamento se realizaria logo que retornasse do campo de batalha. Em 30 de junho Josefel partia para a Itália. Durante o período que passou nos campos de batalha, sofreu muito com saudades de Sara, principalmente quando deixou de receber suas cartas. No Brasil, a jovem cuidava da agência funerária e continuava escrevendo para Josefel, mas já não recebia respostas. Depois de muito tempo acabou concluindo que Josefel deveria estar morto. Com dificuldades financeiras e sem opções, ela vê como única saída aceitar um pedido de casamento feito pelo prefeito da cidade. No dia 18 de julho de 1945, Josefel retorna à sua cidade natal, mas encontra as ruas desertas e sua casa trancada. Um bêbado lhe conta que estão todos na residência do prefeito, onde estaria sendo comemorado o retorno dos expedicionários ao Brasil. Quando chega à festa, Josefel vê Sara sentada no colo do prefeito. Antes de qualquer explicação, ele saca o revólver e mata os dois. Josefel não é condenado, pois é considerado traumatizado de guerra. Entretanto, o homem que até ali era bondoso torna-se uma pessoa amargurada e sem sentimentos, apelidado de Zé do Caixão pela população local.
Quanto à concepção visual do Zé do Caixão, fica evidente a inspiração do personagem clássico Drácula (interpretado pelo “imortal” Bela Lugosi na versão da década de 30, dos estúdios Universal). Entretanto, Mojica acrescentou aos trajes negros e elegantes do personagem características psicológicas profundas e enraizadas nas tradições brasileiras.
O Filme e sua Construção
Embora possa ser considerado até sutil para os padrões atuais, À Meia-Noite… gerou polêmica não apenas ao desafiar e debochar de alguns dogmas cristãos. Toda a violência explícita, os questionamentos metafísicos e a falta de caráter do anti-herói eram características inéditas no cinema nacional.
O longa tem início de um modo pouco comum para os padrões atuais, utilizando uma pequena introdução dividida em duas partes. Antes mesmo dos créditos iniciais, somos apresentados a um personagem sinistro, usando roupas pretas, capa e cartola. Este é Zé do Caixão, que com o estilo e a voz imponente, responde as questões metafísicas que atormentam todo o ser humano: o que é a vida, a morte e a existência? Logo após o término dos créditos, o expectador ainda recebe um novo aviso. Uma bruxa (interpretada pela única atriz profissional do elenco) alerta os que não crêem em fantasmas: “a alma roubada no final da sessão pode ser sua!”. Aconselha então os mais espertos a deixarem a sala de exibição. A construção deste prólogo é similar estratégia de introdução à narrativa utilizada nos quadrinhos clássicos de horror, como nos Contos da Cripta (Tales from the Crypt, da EC Comics); é importante lembrar que Mojica passava horas lendo gibis quando criança. Este mesmo recurso é também utilizado no clássico da Universal Drácula (1931), onde o ator Bela Lugosi prepara os expectadores mais desavisados para o terror que estaria por vir.
Após o prólogo, a primeira sequência é uma das poucas tomadas externas do filme. Rodada num cemitério real, a sequência em si não tem muita importância, mas já revela algumas características do personagem Zé do Caixão: o deboche e o cinismo. Nela, Zé do Caixão presta “sinceras” condolências à família de um morto recém enterrado. Todas as ações em A Meia-noite se desenrolam em 3 cenários: um bar (onde Zé aterroriza os habitantes), a casa do vilão (uma residência simples com uma decoração um tanto quanto sinistra) e um cemitério (onde Zé desafia os mortos e acaba encontrando o seu “destino”). Estes três cenários foram montados pela equipe de Mojica num pequeno estúdio alugado no centro de São Paulo. Eram rodadas em sequência todas as cenas que utilizavam determinado cenário, logo depois tudo era desmontado cedendo lugar para o próximo.
Já o roteiro era modificado e desenvolvido por Mojica durante as filmagens. Contudo, apesar de toda a improvisação, o resultado é uma trama sem furos e que, apesar da simplicidade, introduz um personagem profundo e inovador.
O elenco era formado quase em sua totalidade por atores amadores provenientes da escola de cinema do Mojica. Estes, por diversas vezes erravam suas falas. Curiosamente, a cena não era refilmada como acontece nas grandes produções, pois a quantidade de filme disponível era sempre limitada. Estas falhas eram corrigidas durante a dublagem (nesta época ainda não se usava o “som direto”). Aliás, segundo Mojica, algumas falas eram inteiramente modificadas durante este processo.
Todo este empenho apaixonado, a improvisação e a dedicação que superaram a falta de dinheiro, renderam ao cineasta José Mojica Marins o rótulo de “primitivo” – não no sentido pejorativo, mas no sentido que indica as condições em que foi realizado o filme. Este é o verdadeiro paradoxo resultante da genialidade de Mojica em À Meia-Noite, o seu cinema é primitivo nas condições em que é produzido, mas torna-se sofisticado e audacioso no seu resultado.
Melhores Momentos (contém SPOILERS)
Como dito antes, o descrente Zé do Caixão não se conforma com a infertilidade de sua mulher. E como a continuidade de seu sangue é a única motivação da sua vida (e de seus crimes), é a esposa a primeira a ser assassinada. Em seguida seu melhor e único amigo. Assim como os assassinos em série “clássicos” do cinema, Zé usa a criatividade e costuma não repetir o “método” com qual tira a vida de suas vítimas. O espectador não é poupado e testemunha afogamentos, torturas, e mutilações; além é claro da exposição da vítima a animais venenosos.
O bar da cidade é onde Zé demonstra todo o seu poder e sua crueldade para a população. Numa das situações, o coveiro ganha todo o dinheiro de um pobre coitado num jogo de pôquer. O homem implora e se nega a pagar, alegando que tem família e que aquele seria o seu único dinheiro. Com sangue nos olhos (literalmente, como o Drácula, de Christopher Lee, nos clássicos da Hammer), Zé do Caixão quebra uma garrafa de cachaça e decepa o dedo de seu adversário. Em seguida pede para que o velho dono do bar chame um médico, e avisa ainda que pagará pelas despesas.
Outro momento genial é quando Zé do Caixão assassina Antônio, seu melhor amigo. Enquanto Zé prega o ceticismo, Antônio se opõe respondendo que tem orgulho de ser temente a Deus e de sua fé. Após de violentamente tirar a vida do amigo, Zé zomba: “E agora, de que adiantou sua crença Nele?”. Logo após, sem nenhum ressentimento, o vilão vai até a casa de Teresinha (a noiva de seu amigo). A moça, após ser violentada por Zé, o amaldiçoa, dizendo que se mataria e voltaria para buscar sua alma (daí o título do filme).
O clímax de À Meia-Noite Levarei sua Alma ocorre em seu desfecho, quando Zé do Caixão enfrenta o seu trágico destino. Num final que poderia até ser considerado moralista, o personagem é punido por suas blasfêmias e seus crimes. Num cemitério, é atacado por uma verdadeira procissão de mortos. É o duelo final entre a razão e a lógica contra a superstição e o sobrenatural.
O DVD
Em comemoração aos 50 anos de atividade do cineasta José Mojica Marins, a distribuidora Cinemagia lançou uma caixa contendo seis de seus mais expressivos filmes em versão digital: À Meia-Noite Levarei Tua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver (1967), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), Ritual dos Sádicos aka O Despertar da Besta (1970), Finis Hominis aka O Fim do Homem (1971) e Delírios de um Anormal (1978).
Magnífica reunião da obra essencial e restaurada do Mojica, que além dos filmes, traz uma tonelada de material extra. Só pra se ter idéia, apenas no disco de À Meia-Noite Levarei Sua Alma temos o seguinte conteúdo adicionado: além da trilha de comentários em áudio (por Mojica, Carlos Primati e Paulo Duarte) temos: cena inédita filmada em 2002 pelo próprio Mojica na ocasião do lançamento do box (na verdade uma refilmagem da seqüência onde a personagem Terezinha é estuprada por Zé do Caixão), o curta-metragem em preto-e-branco Reino Sangrento, de 1952, com comentário em áudio (é o mais antigo registro de um trabalho do Mojica), trechos dos seus primeiros longas: A Sina do Aventureiro e Meu Destino em Suas Mãos, entrevista inédita com o próprio José Mojica Marins, entrevistas com o cineasta Carlos Reichenbach, com o músico Branco Mello, com Fernando Costa Netto, com o cineasta Ivan Cardoso (criador do gênero terrir), com R.F. Lucchetti, as filmagens inéditas de uma cirurgia nos olhos de Mojica, diversos trailers originais de seus filmes, especial com pequenas entrevistas de pessoas desconhecidas chamado Quem tem medo do Zé?, comentários com o editor do site Carcasse.com (Cid Vale), um conto de terror do programa Noise da extinta 89 FM (a Rádio Rock), marcha de carnaval de 1969 Em Cima da Hora (cantada por Mojica), galeria com cartazes, lobby cards e fotos inéditas, história em quadrinhos Noite Negra (de 1969), roteiro original do filme e ainda, artigo, sinopse, biografias, filmografia selecionada e links para sites de horror (senti falta de um link pro Boca do Inferno, aqui).
A obra de Mojica, e em especial seu primeiro grande clássico, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, deve ser conhecido e reconhecido por todo fã do gênero, pois o cineasta dedicou toda sua vida e carreira ao cinema e ao gênero fantástico, perpetuando e materializando os seus pesadelos em seus filmes. E À Meia-Noite Levarei Sua Alma é a porta de entrada e o longa fundamental para se entender o genial e subversivo cinema de José Mojica Marins.