Infidel
Original:Infidel Ano:2018•País:EUA Páginas:168• Autor:Pornsak Pichetshote, José Villarrubia, Aaron Campbell•Editora: Image Comics |
Ainda que o ano seja 2018 o de sua publicação e cá estamos na enseada de 2021, e a temática nos pareça tão atual com as recentes notícias vindas do Afeganistão o é, in factum, trata-se de uma temática atemporal: a mistura de preconceito e alienação – a medida mais que perfeita para o floreio do horror.
Como ocidentais que pouco ou nada tenhamos contato com todo uma multi-culturalidade existente do além mares de nosso país em um lugar como o Oriente Médio e suas peculiaridades, e para além dos estereótipos, através de alguma obras que esse contato se estreita – pode-se considerar a forma cômica-trágica de Persépolis (2000-2003), de Marjane Satrapi, ou a aventuresca narrativa de O Árabe do Futuro (2015) de Riad Sattouf -, tendo como plano de história os conflitos existentes em suas próprias terras ou próximas, quando o elemento “estranho” e estigmatizado por atos de ódio como o terrorismo referendando tantos preconceitos e desconfianças, Pornsak Pichetshote resolveu contar um outro conto de horror e para isso emprestando-se dos traços de Aaron Campbell.
Originalmente a obra fora publicada em cinco partes pela editora Image Comics e a edição aqui comentada é a Trade Paperback, que além de contar com as 5 edições há ainda como conteúdo extra as capas alternativas, posfácio e Jeff Lemire dentre outros pequenos mimos:
No cotidiano, Medina, amiga de infância e conterrânea, atua como sua confidente e espécie de porto seguro. Essa amizade funciona como um elo motriz por toda a gradualidade da narrativa por entre os números que se seguem, assim como uma tentativa de torná-la o avatar ponderador do leitor na história. Aisha é uma jovem muçulmana que muda-se com Tom, seu noivo, sua filha Kris, além da futura sogra Leslie para um prédio com o passado não tão distante envolvendo uma explosão atribuída a uma narrativa de terrorismo e um malfadado atentado sob diversas circunstâncias ainda nebulosas. Não obstante o desafio de seguir com a vida após ser deserdada pela mãe por envolver-se com um homem não muçulmano, ela ainda precisa equilibrar sob suas inseguranças ordinárias somada as desconfianças, elencada e ressaltada pelo próprio noivo, de que a mãe dele finge uma tolerância para com as suas origens e credo.
Toda a dinâmica do grupo social em que elas estão inseridas – no contexto de amigos(as) – balança o espectro entre progressistas como Ethan, passando pelo moderado senso comum de Reynolds até a simplória Grace, que tem seu papel no espectro cinza de nossa realidade afastando de vez que a história caia na armadilha rasa só de estereótipos, ou seja, nem mesmo os “bonzinhos” estão além de nossas verdades limitantes – isso Pichetshote esmera e estabelece um excelente campo para o desenvolvimento. Contudo, por alguma razão, talvez tempo ou número de páginas, o primeiro de pouquíssimos pontos negativos da obra, ela é um tanto quanto curta para para o enorme quantidade de possibilidades e histórias a serem exploradas, a exemplo de Ethan.
Ethan se apresenta como um excelente catalisador para os aspectos investigativos da trama, e até arranha esses aspectos mas é abrupto entre os pontos A e B. E infelizmente esse problema pode ser ampliado quando se tem ainda mais pessoas existentes no prédio que mereciam um narrativa – quiçá um número só seu para dar sua “versão dos fatos”.
À medida que a pressão escalona em Aisha, nossa imersão e curiosidade se aprofunda ainda mais na história por trás dos fatos narrados marginalmente – a princípio – mas que se entranha com o mal-estar de todos que vivem no prédio. Obviamente por ser uma série de HQs de horror não havia de abrir mãos dos elementos fantásticos de um lugar assombrado, e aqui brilha o talento de Aaron que captura bem os momentos mais sublimes de um horror advindo de uma letargia angustiante e transborda uma fantasmagoria contorcida realmente alavancada pelas cores de Villarrubia.
O design de personagens de Aaron é extremamente condizente com a proposta da obra uma vez que seu traço não esconde as imperfeições do rosto humano, das desproporções de nossos corpos reais. Várias sequências de quadros nos mostram essa imperfeições impactando a narrativa muito além do limite dos textos. Talvez isso advenha de sua experiência com os títulos de John Constantine: Hellblazer (DC), as nuances de o noir em The Shadow (Dynamite) e com acertadamente seu trabalho com o roteirista em evidência, James Tynion IV, dentre outros, no primeiro número da antologia Razorblades (Tiny Onion).
E é preciso se repetir sobre as magníficas cores de Villarrubia, experiente artista com mais de 900 números a qual emprestou o talento. Entre a organização dos painéis, Aaron imprimi acentuações na história exatamente como um escritor hábil e hora as cores abrem como uma ferida discreta uma janela monocromática para o grotesco, outrora jubila sem pudor como na composição da primeira capa da série. E um adendo especial para quem ler a esta edição: o processo desta capa é descrito em detalhes e ricamente ilustrado em um dos extras intitulado “Infidel cover process“.
Infidel recebeu massiva atenção da crítica e acumulou elogios de diversos outros artistas e profissionais da área, inclusive a indicação entre as cem obras de horror mais relevantes pela National Public Radio – importante instituição de comunicação que aglomera diversos veículos de comunicação nos Estados Unidos da América, financiado por iniciativas públicas e privadas -. Não é para menos, a obra conseguiu dosar dois horrores distintos: o comentário/crítica político-social e o grotesco lírico.
Há tempos não leio um quadrinho da Image Comics. Acompanhava a fase heróica de Spawn, Savage Dragon, Gen 13, Codinome Strike Force, Glory, entre outros. Pelo visto a editora está bem viva. Vamos ver o que há de novo.