Os Escravos de Satanás (2017)

4.6
(9)

Os Escravos de Satanás
Original:Satan’s Slaves / Pengabdi Setan
Ano:2017•País:Indonésia
Direção:Joko Anwar
Roteiro:Joko Anwar
Produção:Gope T. Samtani
Elenco:Tara Basro, Bront Palarae, Dimas Aditya, Hendra, Endy Arfian, Nasar Annuz, M. Adhiyat, Bening Swara, Egy Fedly, Ayu Laksmi

Logo após o sepultamento da mãe, Rini e seus irmãos começam a presenciar aparições fantasmagóricas e eventos sobrenaturais que semeiam o medo e o terror. Uma força maligna parece rondar a casa em busca de algo esquecido em um passado sombrio e deplorável.

O respeitado e promissor cineasta indonésio Joko Anwar (diretor de Impetigore e roteirista de Queen of Black Magic, ambos de 2019) demonstrou durante muito tempo o interesse em reescrever e refilmar um clássico de sua infância: o localmente cultuado e pouco conhecido por aqui Pengabdi Setan (1982), de Sisworo Gautama Putra, ou Satan’s Slave, em seu título internacional.

Em sua releitura, lançada 25 anos depois, Anwar acrescentou consistência e complexidade à trama demasiada simples da versão da década de 80. Enquanto o motor do enredo original era literalmente o demônio intimidando uma família desprovida de fé islâmica, o novo roteiro, além de dar profundidade aos personagens, desenvolve uma reviravolta que estabelece conceitos a serem explorados no que seria a continuação lançada em 2022, Satan’s Slaves: Communion (em dia: Anwar recentemente comentou planos para uma trilogia). Contudo, mesmo com estas mudanças, nota-se o respeito à essência do material original, principalmente na repetição da atmosfera assustadora e na reconstrução de algumas cenas, como o atropelamento do namorado da protagonista, que chamava a atenção originalmente pela precariedade quase amadora e passa a se destacar por um realismo um tanto perturbador.

A aparente entrega com que foi realizado e o talento de Anwar (anotem o nome, em breve em Hollywood) garantiram a Pengabdi Setan o primor técnico e cinematográfico necessário para agradar à crítica e aos fãs. O longa foi inicialmente apresentado em uma série de festivais ao redor do mundo para em seguida arrastar uma multidão aos cinemas indonésios, onde foi assistido por 4,2 milhões de espectadores em 2017. A Shudder, aquela plataforma americana de streaming dedicada ao horror, adicionou o longa ao seu catálogo, ressuscitando também a película da década de 80, proporcionando ao assinante uma experiência diferenciada: assistir os dois longas-metragens, que de alguma maneira se complementam, em sequência. Entretanto, ainda que o filme tenha sido lançado em diferentes países, entre eles Japão, Alemanha e Estados Unidos, no Brasil só é possível encontrar legalmente Satan’s Slaves no Google TV (plataforma de aluguel de filmes e séries do Google), no momento em que esta crítica é escrita.

É importante ressaltar que o longa de Joko Anwar é uma oportunidade válida para o leitor que deseja começar a conhecer o cinema de horror indonésio, que vem apresentando uma série de obras relevantes, como O Terceiro Olho (2017), Fortuna Maldita (2018), The Queen of Black Magic (2019), Impetigore (2019) e Ivanna (2022); além de algumas antigas, como Mystics in Bali (1981) e The Queen of Black Magic (1981).

Para nós, brasileiros, não deixa de ser interessante entender como a Indonésia conseguiu construir uma tradição no gênero fantástico, não apenas em relação à quantidade de obras, mas igualmente na qualidade, revelando nomes como Joko Anwar, Kimo Stamboel, Timo Tjahjanto e Rizal Mantovani. A atuação do Estado foi importante neste processo: em 2010 houve um aumento controverso e expressivo na tributação de filmes estrangeiros, o que diminuiu drasticamente a exibição de produtos hollywoodianas nos cinemas do país.  A consequência foi o crescimento da economia cinematográfica (inclusive com a abertura de novas salas) e um boom de produções locais em categorias populares como ação, comédia e especialmente o horror. Atualmente, as maiores bilheterias são todas de longas-metragens rodados no próprio país, sendo que boa parte é exportada para o resto do mundo.

Voltando a Os Escravos de Satanás, mesmo que o roteiro de Anwar seja bem mais sofisticado, ele se apropria de alguns recursos comuns ao cinemão americano, como os amados e odiados jump scares, por exemplo. A própria trama apresenta certa semelhança com clássicos como O Bebê de Rosemary (1968) e Adoradores do Diabo (1987). A mistura destas influências do cinema ocidental com detalhes da cultura local (como ritos fúnebres ou costumes islâmicos) resulta em um horror elaborado em sua ambientação e estilo.

Já a conclusão pode não agradar a todos – spoilers consideráveis a seguir: Mawarni Suwono, a matriarca da família, que morre de uma doença desconhecida no início do filme, na juventude foi uma cantora popular no país. Porém, apesar do sucesso, vivia um drama pessoal, pois não conseguia engravidar. Em uma decisão impensada, ela faz um pacto com o diabo prometendo entregar seu filho mais jovem em troca da saúde reestabelecida e a possibilidade de ter outros filhos. Esta seria a justificativa para os acontecimentos que assombram a residência, já que Mawarni teria morrido antes de quitar sua dívida. Outra revelação ocorre próxima aos créditos finais e serve como um gancho para as continuações. Nesta última cena vemos um casal dançando e conversando; a mulher se chama Darminah, personagem que na versão anterior era o próprio demônio. Ao fundo é mostrado um mapa com uma centena de lugares identificando onde outras crianças prometidas a satanás estariam. Algo parecido com uma colheita estaria se iniciando. Esta explicação motiva a pequena alteração no título internacional em comparação ao original que se chamava Satan’s Slave (no singular), enquanto a refilmagem adotou Satan’s Slaves.

Um ponto muito favorável a Os Escravos de Satanás é o convincente núcleo familiar, em especial a relação entre os irmãos, potencializada pelo desempenho impecável do elenco. A estrela Tara Basro (de Impetigore, 2019 e Assassinos, 2014) interpreta Rini, a filha primogênita (aliás, aqui vemos a confirmação de uma tendência nas produções indonésias do gênero, que é a utilização de uma protagonista feminina). Completam o elenco Endy Arfian como o  adolescente Toni e Nasar Annuz e M. Adhiyat como os irmãos pequenos, Bondi e Ian, este último um menino de 6 anos com problemas auditivos.

Quanto ao nível de violência, o gore e os efeitos visuais, Os Escravos de Satanás, apesar do título possivelmente assustar os religiosos, é bem-comportado e menos explícito comparado a outros filmes citados nos parágrafos anteriores e, embora entidades como fantasmas e zumbis aterrorizem geral, a única sequência de fato impactante é o atropelamento também já comentado. 

Uma curiosidade: reza a lenda, ou melhor, o Google, que para o representativo episódio (que ilustra um dos pôsteres oficiais) em que a casa é cercada por estranhos vestidos de preto e segurando guarda-chuvas, 24 figurantes foram contratados, porém, na hora da edição 25 pessoas foram contadas. Este cético autor tem sérias dúvidas sobre esta história.

Em resumo, Os Escravos de Satanás é uma obra intensa e hábil em reproduzir uma ambientação de angústia e medo. E numa linguagem própria equilibra o estranhamento de costumes locais e recursos básicos e tradicionais do gênero fantástico. O resultado é uma experiência singular que provavelmente deixará o espectador interessado em conhecer outras produções rodadas neste distante país asiático.

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João Pires Neto

João Pires Neto é apaixonado por livros, filmes e música, formado em Letras, especialista em Literatura pela PUC-SP, colaborador do site Boca do Inferno desde 2005, possui diversos contos e artigos publicados em livros e revistas especializadas no gênero fantástico. Dedica seu pouco tempo livre para continuar os estudos na área de literatura, artes e filosofia

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