A Queda da Casa de Usher
Original: The Fall of the House of Usher
Ano:2023•País:EUA Direção:Mike Flanagan, Michael Fimognari Roteiro:Mike Flanagan, Justina Ireland, Rebecca Klingel, Dani Parker, Kiele Sanchez, Jamie Flanagan, Emmy Grinwis, Mat Johnson Produção:Jamie Flanagan, Kathy Gilroy Elenco:Carla Gugino, Bruce Greenwood, Mary McDonnell, Henry Thomas, Rahul Kohli, Samantha Sloyan, T'Nia Miller, Zach Gilford, Willa Fitzgerald, Michael Trucco, Katie Parker, Matt Biedel, Crystal Balint, Ruth Codd, Ruth Codd, Carl Lumbly, Mark Hamill, Kate Siegel, Sauriyan Sapkota, Paola Núñez, Malcolm Goodwin |
Publicado em 1839, o conto “A Queda da Casa de Usher” explora um dos medos recorrentes de Edgar Allan Poe, a tafofobia, ou, o medo de ser enterrado vivo. No texto, Roderick Usher convida o narrador para uma visita, em que irá expressar fisicamente sua melancolia e temor pelo estado de saúde de sua irmã gêmea Madeline. Toda a narrativa progride para a deterioração psicológica do anfitrião e para um horror gráfico construído como um pesadelo, culminando com o desmoronamento de sua morada. Esse horror atmosférico teve diversas adaptações cinematográficas a partir de 1928, com o francês La Chute de la maison Usher, e, uma das mais prestigiadas, O Solar Maldito (House of Usher, 1960), com Vincent Price no papel principal. Chegou a vez, então, de Mike Flanagan contribuir para o enriquecimento da obra original, depois de ter abordado duas outras casas assombradas da literatura. Só não imaginavam que ele faria simplesmente a melhor versão para o conto de Poe.
Não no sentido de fidelidade, mas pelo bom trato. Flanagan trabalhou sobre a linha narrativa principal numa teia de revisitação a outros textos do escritor, fazendo da residência dos Ushers o ponto de partida para homenagens e referências. Um deleite visual, bem produzido, com elementos assustadores, abrigando paranoia e loucura e um encontro com Fausto e o fim de seu contrato. O mais singular dos fãs de Edgar Allan Poe se sentirá agraciado por essa ode, satisfeito pelo cuidado técnico e respeito ao escritor que desenvolveu o horror gótico literário.
A minissérie completa foi disponibilizada na Netflix no dia 12 de outubro – cinco dias após o aniversário de 174 anos da morte de Edgar Allan Poe. A Queda da Casa de Usher teve direção do próprio Flanagan, além de Michael Fimognari, sendo dividida em 8 episódios, com títulos que referenciavam obras conhecidas do escritor à medida que envolvia os descendentes de Roderick Usher (Bruce Greenwood, substituindo Frank Langella, que teve acusações de assédio no set) numa herança de mortes dolorosas e gráficas.
No episódio piloto, o espectador já sabe que Roderick, o CEO da Fortunato Pharmaceuticals, perdeu em duas semanas seus seis filhos: o herdeiro Frederick (Henry Thomas); a empresária Tamerlane (Samantha Sloyan); a cirurgiã de um projeto de malha cardíaca, Victorine (T’Nia Miller); o empresário dos jogos eletrônicos Leo (Rahul Kohli); a chefe de relações públicas Camille (Kate Siegel); e o jovem socialite Perry (Sauriyan Sapkota). Mesmo com esse “spoiler” logo no primeiro momento da série, a narrativa consegue surpreender à medida em que cada perda se configura de maneira a dialogar com o universo Poe, indo além até mesmo dos personagens que cruzam com o elenco principal. Um deles é o advogado Auguste Dupin (Carl Lumbly), que, na literatura de Poe, é o nome do detetive que surgiu pela primeira vez em “Os Assassinatos da Rua Morgue“, lançado em 1841, e depois apareceria em mais duas obras, inspirando a criação de Sherlock Holmes.
Dupin é o confidente do anfitrião e também testemunha dos crimes de Roderick. Na casa, já deteriorada pela conservação, representando a decadência dos Ushers, enquanto recebe visitas de assombrações do passado, atormentado por visões de um inferno pessoal, Roderick resgata suas origens, iniciando na infância, em 1962, quando a mãe dele e de Madeline, Eliza (Annabeth Gish) – referência à mãe de Edgar Allan Poe, Elizabeth Arnold Hopkins Poe, retorna dos mortos como uma assombração para se vingar de seu ex-chefe William Longfellow (Robert Longstreet), no primeiro momento aterrorizante da minissérie. Há também a primeira aparição do “anjo da morte” a bartender Verna (Carla Gugino) – o nome é um anagrama para Raven, “corvo” em inglês, citação a um de seus poemas mais importantes -, no reveillon de 1979, quando foi feita a proposta de uma mudança de vida.
O segundo episódio, “A Máscara da Morte Rubra” (conto publicado em 1842), já mostra a dinâmica da narrativa ao alternar situações do passado, ambientado em 79, quando Roderick (interpretado por Zach Gilford) vivia com Madeline (Willa Fitzgerald), sua esposa Annabel Lee (Katie Parker) – referência a outro poema de Poe – e os dois filhos do casal, Frederick e Tamerlane, e tentava crescer na Fortunato a partir do medicamento Ligadone, mesmo com os abusos do presidente, Rufus Griswold (Michael Trucco). No “presente“, os filhos de Roderick são mostrados em suas rotinas, com destaque nesse episódio para Perry, que planeja organizar um baile de máscaras em uma das propriedades da empresa, tendo secretamente a presença da esposa de Frederick, Morella (Crystal Balint) – nome homônimo a um conto de Poe, publicado em 1835 -, além de uma figura mascarada, culminando numa tragédia de corpos derretidos.
“Assassinato na Morgue da Rue“, de 1841, é o título do terceiro episódio, e explora o laboratório de pesquisa sobre a malha cardíaca, patrocinada por Roderick, que sofre de Cadasil. Os experimentos iniciais e falhos são feitos em chimpanzés por Victorine e sua namorada Dra. Alessandra Ruiz (Paola Núñez), mas já o interesse de acelerar o processo para testes em humanos. Camille, que explora sexualmente seus assistentes Toby (Igby Rigney) e Tina (Aya Furukawa), é quem decide ir ao local investigar em busca de um suposto informante da família. Nesse episódio, é conhecida a rotina de Leo e seu gato preto Plutão, que terá importância assustadoras no quarto episódio, traçando o destino de mais um dos filhos de Roderick.
E assim se segue a narrativa de A Queda da Casa de Usher, reservando outros títulos e referências: “O Coração Delator” (episódio 5), “O Escaravelho de Ouro” (episódio 6), “O Poço e o Pêndulo” (episódio 7) e o último, “O Corvo“, concluindo o fardo dos Ushers, com citação direta aos versos do poema, e um momento dramático envolvendo a doce Lenore (Kyliegh Curran), filha de Frederick, com referência a outra poesia. Há espaço ao universo Poe na escolha do braço direito de Roderick, Arthur Pym (Mark Hamill), como homenagem ao romance completo do escritor, publicado em 1838. E há mais, como “O Barril de Amontillado“, lembrado no nome da empresa, Fortunato, e também no destino de um personagem, além de tantas outras referências, sutis ou explícitas.
Toda essa exploração do universo de Poe é feita de maneira condizente com a proposta da minissérie. Discursos, nomes de personagens, objetos de cena, ambientações….a obra completa de Poe é embebida em cada detalhe, sem que apareça de maneira gratuita ou forçada. E todo esse quebra-cabeça de homenagens é envolto em uma atmosfera de horror, com assombrações e aparições, em um horror gótico bem construído com muito sangue e poesia. Conta mais uma vez com rostos conhecidos de outras adaptações e minisséries de Mike Flanagan, e atuações magníficas como a de Carla Gugino em múltiplos papéis, mostrando-se ao protagonista como uma ameaça crescente.
Provável última parceria de Flanagan com a Netflix, A Queda da Casa de Usher é uma despedida em grande estilo. Atingindo níveis de perfeição como A Maldição da Residência Hill, a minissérie é um dos melhores produtos para a TV lançado em 2023 – se não for o melhor. Para quem vê Poe como uma inspiração literária – o próprio Lovecraft o enxergava dessa forma -, esta série deve ser enaltecida como merece, por tudo o que se propôs: uma obra-prima a ser acompanhada com um cálice de amontillado.
O texto, a direção e as atuações são realmente impecáveis! A qualidade dos efeitos visuais e da maquiagem tbm merecem destaque. Excelente crítica
Trabalho ESPETACULAR!!! Melhor coisa que a Netflix lançou em 2023, disparado.
Ótima resenha/crítica