Núbia: O Despertar
Original:Nubia: The Awakening Ano:2024•País:EUA Autor:Omar Epps, Clarence A. Haynes•Editora: Seguinte |
Estudos estimam que por volta de 2050 a cidade de Nova York, nos Estados Unidos, ficará submersa e desaparecerá. Não só a metrópole rodeada por água está afundando aos poucos devido ao peso dos milhares de edifícios, como também há o agravante do aumento do nível do mar devido a sérias mudanças climáticas. Além de estar afundando aos poucos, seus moradores já podem sentir os impactos quando acontecem fortes tempestades, que alagam principalmente toda a parte baixa da cidade. Quanto mais destruímos o meio ambiente, mais contribuímos para que cidades como Nova York – dentre milhares de outras, vide a situação em vários pontos do Brasil em épocas de chuvas fortes – fiquem cada dia mais perto de desaparecerem e, no processo, enfrentarem desastres climáticos devastadores graças ao descaso dos governantes. E é claro que a classe mais baixa será a primeira e maior atingida.
Tal futuro não está tão distante, mas não deixa de ser uma distopia assustadora e bem realista. Baseando-se em tais estudos e nos recentes desastres que ocorreram e ocorrem não apenas nos Estados Unidos, como também ao redor do mundo, e de como as pessoas periféricas – especialmente imigrantes – são marginalizadas e esquecidas, os autores Omar Epps e Clarence A. Haynes escreveram Núbia: O Despertar. Uma distopia afro-futurista que aborda a importância de se agarrar à sua ancestralidade enquanto tenta lidar com um caos climático e ganância da elite.
A inundação foi inevitável, a parte baixa de Nova York foi completamente invadida pelas águas e muitos perderam tudo. Calamidade, situação de emergência. Em 2059 quebra mares foram construídos para conter o avanço das águas, mas é claro que essa solução não foi suficiente o bastante. Ricos e influentes logo deram um jeito, construíram Alto, a primeira cidade construída com tecnologia antigravidade. Ali, poderiam ficar seguros e despreocupados com o avanço do nível do mar. Em meados de 2070 os primeiros nova-iorquinos com poder aquisitivo suficiente mudam-se para tal lugar seguro e, logo, pessoas de todo o mundo – também afetadas por catástrofes climáticas – se instalaram ali. Mais tempestades castigam a cidade baixa, mais quebra mares são construídos e, em meio a isso, refugiados núbios começam a chegar, já que seu país fora engolido pelas águas. Os imigrantes são acolhidos e se instalam na cidade baixa, procurando empregos para se sustentarem, mas encontrando grandes dificuldades. Apesar de montarem uma comunidade no lugar chamado de Pântano pelos locais, dificilmente conseguiam empregos dignos, apenas subempregos que mal davam para o sustento. Mais difícil ainda seria um núbio ascender para Alto, apesar de ser o sonho de muitos.
E é nessa realidade, já em 2098, que vivem a determinada e forte Zuberi, o inteligente e esforçado Uzochi e o rebelde Lencho, três jovens núbios com personalidades bem distintas, mas que são igualmente rejeitados pela sociedade, apesar de algumas pessoas tentarem camuflar o claro preconceito. Zuberi treina lutas núbias todos os dias para nunca ser pega desprevenida e preservar suas raízes, Uzochi participa do maior número de aulas possível com a ambição de ganhar uma bolsa de estudos em Alto e ter uma melhor condição de vida, Lencho faz parte da gangue Sóis Divinos, composta apenas de núbios e, apesar de mal se falarem, é primo de Uzochi. Aos poucos, os jovens experienciam fenômenos estranhos, visões de vultos, vozes em suas cabeças, picos ou falta de energia repentinos, especialmente quando estão juntos no mesmo lugar. Logo, outros jovens núbios começam a manifestar poderes sobrenaturais, e isso chama a atenção de Krazen St. John, soberano de Alto e aclamado como salvador de todos. Cabe aos anciões da Núbia explicarem o que está acontecendo e contar sobre o passado e segredos de seu povo, preparando os jovens para desafios muito maiores do que já enfrentam no dia-a-dia.
São claros os elementos da ficção científica e fantásticos presentes na obra, mas o que chama a atenção é a elegância com a qual Epps e Haynes inseriram aspectos socioeconômicos e políticos na narrativa. Evidente que distopias costumam abordar hierarquia de poderes em seus enredos – Blade Runner, Mad Max, Maze Runner e tantos outros estão aí para mostrar isso -, mas aqui causa uma identificação muito maior. Quantos casos já vimos de refugiados sendo desprezados e submetidos a situações insalubres nos últimos anos? Quantos casos de racismo e xenofobia conhecemos? E mais além, quantos políticos são endeusados quando fazem o mínimo (às vezes nem isso), mesmo a culpa da situação na qual a população se encontra sendo deles? Somos avisados há décadas sobre catástrofes climáticas e ninguém fez nada para barrar isso, apenas tentam agir e cobram ação quando já é tarde demais e culpam uns aos outros, enquanto o povo fica em situação de miséria. Os ricos ascendem, os pobres afundam, é esse o paralelo feito neste livro, tanto que a parte baixa é chamada de Pântano. O salvador St. John usa palavras bonitas, mas está pleno em seu castelo seguro e imponente e usa de tragédias para se promover, tal qual a classe alta se compadece de quem sofre com desastres naturais na frente das câmeras, enquanto riem, debocham e não oferecem o mínimo de dignidade para seus empregados em suas casas ou empresas. E a situação é ainda pior quando entra na equação pessoas refugiadas, quanto mais refugiados negros. A disparidade é muito clara, e mesmo assim alguns tentam ignorar e trabalham o triplo para mostrarem seu valor e serem reconhecidos, outros sabem o quanto o sistema é falho e o quanto sua ancestralidade é importante e tentam ajudar os seus como podem. Ainda há aqueles que são explorados tão sutilmente a ponto de acharem que fazem parte da elite, agindo com seus iguais exatamente do mesmo modo que os exploradores, esquecendo suas raízes e que são considerados descartáveis. São muitas camadas relevantes presentes em Núbia: O Despertar.
Como o próprio título sugere, este volume mostra como os núbios da nova geração, aqueles que sequer conheceram sua terra natal (o que não impede de serem marginalizados pelos outros), foram despertando seus poderes. Portanto, apesar de alguns momentos de ação, é muito mais uma introdução para o que está por vir, afinal, há décadas os núbios não manifestavam poderes. Não chega a ser uma narrativa cansativa, pelo contrário, todas as nuances já comentadas, utilizando um pano de fundo distópico, são bem interessantes, porém, algumas coisas demoram a acontecer. Metade do livro é sobre os protagonistas descobrindo aos poucos que tem poderes sobrenaturais e sem saber usá-los, entretanto isso é necessário para o bom desenvolvimento e entendimento da história. Aliás, os três principais têm personalidades bem delineadas e trabalhadas ao longo dos capítulos, que são intercalados a partir do ponto de vista de cada um, sendo indivíduos de grande complexidade apesar de tão jovens, e isso se estende até mesmo aos secundários. A dubiedade do caráter de alguns é outro ponto válido a ser comentado, pois mostra como o meio e vivência influenciam nas decisões de vida, tornando a experiência de cada um muito individual. Há alguns grandes momentos de tensão, mas a revolução de verdade certamente acontecerá nos volumes seguintes. Podemos aguardar muito mais ação, conflitos e poderes mirabolantes sendo descobertos, talvez até mesmo um pouco mais de contexto sobre a Núbia, coisa que faltou neste volume.
Núbia: O Despertar pode parecer uma distopia juvenil simples à primeira vista, mas oferece um enredo envolvente que fala sobre desastres ambientais, poderes sobrenaturais e a importância de conhecer suas raízes com uma visão abrangente e afiada sobre a sociedade e suas classes sociais.