4.4
(13)

I Saw the TV Glow
Original:I Saw the TV Glow
Ano:2024•País:EUA
Direção:Jane Schoenbrun
Roteiro:Jane Schoenbrun
Produção:Sam Intili, Emma Stone, Ali Herting, Dave McCary, Sarah Winshall
Elenco:Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Lindsey Jordan, Helena Howard, Danielle Deadwyler, Ian Foreman, Emma Portner

Owen (Justice Smith) é um jovem tentando se encaixar num mundo onde tudo parece difícil e distante. Quando uma colega de escola, Maddy (Brigette Lundy-Paine), apresenta a oportunidade de assistir a uma série de seu interesse, a vida de Owen se transforma aos poucos. Em passos lentos e forte impacto, o longa de Jane Schoenbrun pode não agradar a todos, mas é uma obra que vai tocar certeiramente em feridas específicas de muitos.

Maddy parece ser a primeira amizade de Owen, e a conexão entre ambos se dá pela série de mistério The Pink Opaque. Na série ficcional e nova obsessão de Owen, duas jovens possuem a marca de um fantasma em neon em suas nucas e isso as conecta para uma jornada de desvendar mistérios e lidar com monstros. Ambos se encontram semanalmente para assistirem aos episódios na casa de Maddy, que em certo momento revela que irá fugir de casa e da cidade, convidando Owen para fazer o mesmo. Porém ele desiste no último minuto e assim se vê mais uma vez sozinho e desconectado da realidade fora do brilho rosa da TV.

Com o passar dos anos, Owen se vê perdido em suas memórias e questionando sua realidade. Sua adolescência realça sua solidão e estranheza, fugindo daquela visão nostálgica, colorida e cheia de vida que é passada pela maioria das obras atuais ao retratar os anos 90.

O filme é focado na história de vida de Owen, e um de seus pontos principais é como nossa memória é completamente afetada pelas nossas vivências, maturidade e emocional. Isso é registrado em duas cenas que ilustram bem a dicotomia dos nossos olhares. Quando criança, The Pink Opaque prende a atenção do protagonista onde os monstros são extremamente assustadores e as personagens heroínas incríveis. Ele tem a sede por saber mais, por aguardar o próximo episódio e fazer teorias sobre pontos sem respostas. Em contrapartida, quando mais velho, decide maratonar todos os episódios agora disponíveis em algum streaming genérico. Owen se vê entediado, os personagens parecem crianças bobas, os monstros ridículos e uma história nada demais. O que reflete também suas emoções e visão de vida/mundo guiada por elas.

Ao mergulhar na mente do protagonista somos levados a uma jornada de confusão. Suas memórias se misturam com cenas da série. Sua narração dá um tom frio e distante de suas vivências e começamos a questionar o que está sendo mostrado a nós como espectadores. Muitas cenas dão um toque de loucura e imaginação desenfreada, mesclando com imagens que, em um primeiro momento, não parecem fazer sentido. Mas quanto mais vamos entendendo Owen, mais as peças vão se encaixando.

O filme não se apoia em efeitos visuais constantes e CGI de grandes produções, e realmente não precisa disso para entregar um ótimo visual. Era esperado um jogo de cores neon ao decorrer, mas sem ficar saturado ou forçado sem contexto.

De certa forma I Saw the TV Glow presta uma homenagem às séries dos anos 90 e o quanto gerou um impacto sociocultural nas crianças dessa época. Era preciso esperar o episódio sair semanalmente e assisti-lo ao vivo diretamente no canal da TV aberta, ou programar seu VHS para fazer a gravação. Os programas uniam as pessoas e criavam eventos. Quem tinha o privilégio chamava os colegas para sua casa. As pessoas se reuniam, discutiam, teorizam e criavam vínculos através das séries que gostavam. A própria Pink Opaque tem cenas de clara referência à séries americanas noventistas como Buffy A Caça-Vampiros e Charmed.

E por falar em séries antigas, toda a parte “loucura” mostrada no filme dá um toque Twin Peaks, lembrando também o longa excelente Mulholland Drive de David Lynch. Tanto pelo movimento de câmeras, os cortes abruptos e ouso dizer, até um pouco do estilo da trilha sonora.

Quem estiver esperando um horror com sustos, bizarrice e gore, pode ficar bem decepcionado. O horror aqui é o existencial. Tanto que o vilão do “Pink Opaque”, e não só da série ficcional, é chamado de Mr. Melancholy. O filme é uma grande alegoria para uma vida no armário e a descoberta de si. Maddy, que no começo é uma jovem que performa um pouco de feminilidade, se empodera através da série e se liberta das amarras sociais, de gênero, do subúrbio e daquelas pessoas de quem era tão desconexa. Quando reaparece anos depois, em seu novo e liberto eu, Maddy coloca em dúvida as memórias de Owen, que continua preso dentro de si até pelas mesmas amarras.

É no vínculo e identificação com Pink Opaque que dois jovens queers, percebem que pessoas excluídas podem combater monstros. Primeiro imaginários e metafóricos, para enfim terem forças para lutar contra os reais. E essa força escapa pelos dedos de Owen com o sumiço de Maddy. Sua vida continua ali, do mesmo jeito, no mesmo lugar, sem conseguir dar vazão ao seu verdadeiro eu. E isso fica claro com a mescla e passagem de tempo mostrados com maestria no ritmo confuso e proposital, do filme.

Jane Schoenbrun, a própria diretora e roteirista deste novo horror indie, é uma pessoa não binária e transfeminina. Identidade de gênero e disforia são temas frequentemente abordados em suas obras. Seu filme nos transporta para essa homenagem quase pessoal com uma mensagem clara para quem precisa dela. Assim como muitos de nós tivemos essa sincronia de consumir uma obra certa, no momento certo, nos tocando no âmago do que precisávamos naquele momento. Quem nunca?

É um ode à conexão com séries e filmes que despertam em nós uma variedade de sentimentos. Para Maddy, uma força de ser livre. E para Owen, o medo dessa liberdade na mesma proporção. São os mesmos envolvidos em uma mesma situação, que se lembram e interpretam de maneiras diferentes sobre o que aconteceu e o que sentiram ali.

Enquanto estamos imersos no ponto de vista de Owen, somos colocados no mesmo estado de transe enquanto maratonamos a história de sua vida pelo filme. Assim como ele mesmo foi sentindo ao decorrer de Pink Opaque pelos anos. São muitas informações que com certeza são melhor absorvidas e conectadas em uma segunda assistida do filme.

É uma clara e ótima representação da temática transgeneridade na grande mídia. Um incentivo para quem se sente deslocado, com medo, a dar voz ao seu eu calado por monstros impostos que não são nossos. É uma porta de esperança de que vai ficar tudo bem em ser quem realmente se é. De que há outros tantos por aí e que ninguém está realmente sozinho.

I Saw the TV Glow vem como o segundo filme de uma trilogia, ainda a ser completada pela criação e direção de  Jane Schoenbrun. O primeiro longa lançado em 2021 foi o também excelente, We’re All Going to the World’s Fair. Schoenbrun é definitivamente um nome a ficar de olho quando falamos em horror e cinema alternativo.

Com uma execução visionária e visceral, I Saw the TV Glow é um filme desconfortavelmente necessário e profundo. Como a grande maioria dos filmes da produtora A24, não decepciona ao sair da velha, conhecida e saturada fórmula ao se fazer terror. Um ótimo roteiro, uma linda execução e atuações primorosas, é um filme que acerta em todos os seus pontos. O longa ainda não tem data definida para sua estreia no Brasil, mas é definitivamente uma experiência válida assistir assim que possível. Não à toa que tornou-se um dos maiores destaques no Festival Sundance deste ano.

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