![]() A Ilha das Almas Selvagens
Original:The Island of Dr. Moreau Ano:2020 / 1896•País:UK Autor:H.G. Wells•Editora: Bandeirola |
Considerado um dos precursores da ficção científica – ao lado de Júlio Verne e Mary Shelley – devido a romances como Guerra dos Mundos, A Máquina Do Tempo e O Homem Invisível, o britânico Herbert George Wells, nascido em 1866, tinha uma visão muito além de sua época. Em contraste à empolgação social gerada pela segunda Revolução Industrial, suas obras traziam uma reflexão crítica sobre temas atuais e relevantes como a luta de classes, as consequências de guerras a nível global, o uso desmedido dos avanços tecnológicos e a ética na ciência que cada vez mais progredia no campo da manipulação genética.
A área da engenharia genética e a ética científica são alguns dos temas tratados em uma de suas obras mais conhecidas, adaptada diversas vezes para o cinema: A Ilha do Doutor Moreau, escrito em 1896. No Brasil, foi traduzido em 1935 como A Ilha das Almas Selvagens, e em 2020 a editora Bandeirola relançou o romance com sua tradução original feita por Monteiro Lobato.
A história é narrada em primeira pessoa por Edward Prendick, um biólogo inglês sobrevivente do naufrágio do navio Lady Vain. Após ficar um tempo considerável à deriva em alto mar e perder qualquer esperança de ficar vivo, Prendick acaba sendo resgatado pelos passageiros de uma embarcação que está levando um carregamento incomum de diversos animais selvagens para uma ilha isolada no Oceano Pacífico.
Apesar de desenvolver uma certa camaradagem com um dos passageiros, chamado Montgomery, que ajudou em seu resgate e parece ser o responsável pelo carregamento, Prendick quase acaba novamente à deriva momentos antes de chegar à remota e paradisíaca ilha, pois a tripulação da embarcação não vê com bons olhos e trata até com certa agressividade os (estranhos) passageiros que estão junto de Montgomery. Após alguns momentos turbulentos, Prendick enfim chega à ilha e é apresentado a um cientista exilado da Inglaterra por práticas impróprias: Doutor Moreau. Após se recuperar, o naufrago se vê preso em um lugar onde coisas grotescas acontecem, cheio de figuras hostis e segredos horrendos que desafiam a mente humana.
A relação de Moreau com seus serviçais, estranhas figuras nativas da ilha, e o que exatamente ele quer com os animais importados são o principal ponto da primeira metade da obra, pois Prendick, apesar de convidado no local, cada vez mais se incomoda com as coisas estranhas que presencia e vai em busca de respostas. Wells trabalha bem esse mistério, com a crescente paranoia de Prendick e sua jornada para saber o que acontece na ilha sendo o ponto alto do livro e a parte mais envolvente da leitura.
Prendick e Moreau em suas conversas trazem à tona um grande debate ético, muito presente nas obras de Wells: até onde é aceitável ir em nome da ciência? A ambição de conseguir avanços científicos a qualquer custo vale passar por questões morais? O homem deve manipular a natureza a seu bel-prazer? A resposta crítica do autor a essas perguntas fica evidente quando, em determinado momento, o destino dos personagens é traçado.
A Ilha Das Almas Selvagens é um livro que constrói muito bem um mistério inicial, gerando uma sensação constante de estranheza, porém, após a revelação desse mistério e o que acontece com Prendick, Moreau e Montgomery, a narrativa começa a ficar mais arrastada e até um pouco repetitiva, mesmo sendo uma obra curta. Em sua reta final não há grandes surpresas ou reviravoltas, com um desfecho esperado para uma história de ficção científica. Claro, deve-se levar em conta a época na qual foi escrita e que a narrativa é uma das pioneiras do gênero, portanto, é compreensível soar previsível nos dias de hoje. Quando lançada, a obra foi recebida com um misto de repulsa e fascínio, considerada imoral por uns e um marco da literatura para outros, inspirando debates sobre bioética, monstruosidade e o avanço científico desenfreado.
O colonialismo é extremamente presente, especialmente na descrição dos personagens tidos como selvagens da ilha, descritos como inferiores e sem importância e, em sua maioria, negros. A lógica imperialista fica clara na relação de Moreau e os nativos, e Wells ironiza essa arrogância pois, em dado momento, o domínio do colonizador fica instável em relação aos “colonizados”. Entre diversas outras críticas, o autor cutuca a hipocrisia da sociedade que se acha muito polida e superior, mas, no fundo, esperam apenas uma oportunidade para serem violentos e deixarem à mostra sua bestialidade, sendo mais selvagens e cruéis do que aqueles que se acham no direito de dominar em nome da “civilidade”.
Nos dias de hoje, a obra pode não ter o mesmo impacto chocante de séculos atrás, mas é inegável sua importância, que abriu portas para autores como George Orwell, Isaac Asimov, Ray Bradbury, entre outros. Wells, em poucas páginas, faz de sua obra de ficção uma reflexão política e filosófica, sem deixar de lado o horror nas mais diversas formas. Horror corporal e terror psicológico estão presentes em A Ilha das Almas Selvagens ao longo de toda a narrativa, tanto nos experimentos feitos por Moreau quanto nos desafios que Prendick enfrenta.
A Ilha das Almas Selvagens é uma ótima leitura para aqueles que, além de apreciarem a ficção científica, também são curiosos para saber como, mais de 120 anos atrás, H. G. Wells conseguiu ter um olho crítico e temer que a humanidade pudesse perder o que nos torna humanos em prol de avanços irrefreáveis.