![]() Bugonia
Original:Bugonia
Ano:2025•País:EUA, Irlanda, UK, Coreia do Sul, Canadá Direção:Yorgos Lanthimos Roteiro:Will Tracy, Jang Joon-hwan Produção:Ari Aster, Ed Guiney, Lars Knudsen, Jerry Kyoungboum Ko, Miky Lee, Yorgos Lanthimos, Andrew Lowe, Emma Stone Elenco:Jesse Plemons, Aidan Delbis, Emma Stone, J. Carmen Galindez Barrera, Marc T. Lewis, Vanessa Eng, Cedric Dumornay, Alicia Silverstone, Stavros Halkias, Momma Cherri, Fredricka Whitfield, Roger Carvalho |
Existe fascinação perene no cinema por teorias da conspiração e pelo limiar tênue entre paranoia justificada e delírio completo. De Pi (1998) de Darren Aronofsky, que mergulha na obsessão matemática até colapso psicológico, passando por Possuídos (2006) de William Friedkin, onde infestações imaginárias manifestam traumas reais, até Mãe! (2017) de Aronofsky novamente, alegoria bíblica disfarçada de horror doméstico, o gênero provou que as melhores narrativas conspiratórias funcionam simultaneamente como reflexo literal e metáfora social. Yorgos Lanthimos, cineasta grego que construiu carreira dissecando comportamento humano com frieza quase entomológica em Dente Canino (2009), O Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), parece candidato ideal para explorar esse território. Bugonia (2025), remake do cult sul-coreano Save The Green Planet! (2003), marca retorno de Lanthimos a sátiras mais afiadas após seus experimentos de época (A Favorita, Pobres Criaturas), mas também representa suas concessões mais substanciais ao cinema mainstream americano. O resultado é filme simultaneamente rico e frustrantemente domado, que brilha em momentos isolados, mas nunca alcança a grandeza perturbadora que seu diretor já demonstrou ser capaz.
A premissa funciona como armadilha narrativa engenhosa: Teddy Park (Jesse Plemons), apicultor marginalizado e teórico conspiratório convicto de que alienígenas infiltrados controlam a Terra, sequestra Michelle Fuller (Emma Stone), CEO de corporação química que ele acredita ser uma extraterrestre disfarçada. Com ajuda do seu jovem e autista primo Don (Aidan Delbis), Teddy aprisiona Michelle num porão improvisado, submetendo-a a interrogatórios e torturas para forçar sua confissão e impedir planos de dominação planetária. O roteiro de Will Tracy (conhecido principalmente pelo filme O Menu (2022) e pela bem-sucedida série Succession (2019-2023)) estrutura a narrativa em dias de contagem regressiva até supostamente os alienígenas executarem próxima fase de seu esquema. Essa estrutura funciona mais como marcador teatral de atos que como urgência genuína, já que nunca fica clara a razão pela qual o plano alienígena seguiria cronograma tão conveniente ou por qual motivo Teddy possui informação tão precisa sobre timing. Mas essa ambiguidade é proposital: o filme constantemente questiona se estamos assistindo thriller de ficção científica ou estudo de personagem sobre homem mentalmente perturbado projetando traumas pessoais em fantasia elaborada.
O que separa Bugonia de exercícios similares é precisamente essa dualidade mantida com rigor impressionante até os momentos finais. Tracy constrói Teddy com camadas suficientes para que tanto leitura literal quanto psicológica permaneçam viáveis. Vemos fragmentos de seu passado através de flashbacks econômicos: bullying na infância pelo xerife local, relacionamento complicado com mãe negligente, exposição gradual a teorias conspiratórias através de fóruns online e vídeos de YouTube que oferecem narrativas sedutoras sobre o porquê de sua vida ter fracassado (não por suas escolhas ou circunstâncias socioeconômicas, mas porque forças cósmicas sinistras o escolheram como alvo). Jesse Plemons entrega performance que pode ser seu trabalho mais impressionante até agora, alternando entre vulnerabilidade genuína e convicção assustadora com fluidez que torna Teddy simultaneamente ameaçador e trágico. Há a cena em que ele explica sua cosmologia conspiratória para Michelle amarrada que funciona tanto como exposição de ideologia quanto como grito desesperado de alguém tentando encontrar padrão em vida que nunca fez sentido. Plemons modula tom de voz, postura corporal e até ritmo de fala para transmitir homem inteligente cuja inteligência foi canalizada para estruturas delirantes porque realidade convencional nunca ofereceu espaço para ele existir com dignidade.
Emma Stone, frequente colaboradora de Lanthimos após A Favorita (2018) e Pobres Criaturas (2023), interpreta Michelle Fuller com frieza calculada que gradualmente revela fissuras. Ela é CEO no molde contemporâneo: articula valores progressistas enquanto comanda corporação que destrói ecossistemas, performa empatia enquanto maximiza lucros, domina linguagem de autoaperfeiçoamento enquanto explora trabalho alheio. Stone nunca cai em caricatura, o que é notável considerando que a personagem poderia facilmente se tornar paródia de tecnocracia. Há humanidade real sob a máscara corporativa, especialmente quando o cativeiro se estende e Michelle passa por estágios reconhecíveis de luto: negação (tentando raciocinar com Teddy), raiva (atacando-o verbalmente), barganha (oferecendo dinheiro, promessas), depressão (silêncios longos onde contempla a morte) e eventual aceitação ambígua de seu destino. Mas tanto Stone quanto Lanthimos tinham capacidade de extrair ainda mais camadas dessa personagem. Conhecendo o histórico do diretor em criar personagens femininas complexas e perturbadoras (Aggeliki Papoulia em Dente Canino, Rachel Weisz em O Lagosta, Olivia Colman em A Favorita), sente-se que Michelle ficou subdesenvolvida comparado ao que poderia ter sido.
O terceiro ponto do triângulo dramático é Don, primo de Teddy e figura que ancora o filme emocionalmente de maneiras inesperadas. Interpretado por Aidan Delbis, ator não-profissional autista, o personagem transmite volumes através de linguagem corporal e expressões faciais mínimas. Há inocência genuína em Don que contrasta brutalmente com a paranoia de Teddy e o cinismo de Michelle. Ele participa do sequestro não por convicção conspiratória, mas por lealdade familiar e, possivelmente, porque Teddy é uma das poucas pessoas que o trata com respeito consistente. A dinâmica entre os dois primos é retratada com ternura surpreendente, especialmente em cenas domésticas antes do sequestro onde compartilham refeições silenciosas ou cuidam das abelhas juntos. Don representa humanidade não corrompida por teorias, não deformada por ambição corporativa, apenas existindo com pureza que torna seu eventual destino ainda mais devastador. Mas Lanthimos e Tracy o relegam a papel coadjuvante quando havia material para torná-lo coprotagonista. Seu desenvolvimento e conclusão na narrativa são tragicamente limitados, desperdiçando potencial de Delbis e da função dramática que o personagem poderia servir.
Visualmente, Bugonia é triunfo. Robbie Ryan, diretor de fotografia que já colaborou com Lanthimos em A Favorita e Pobres Criaturas, fotografa em 35mm VistaVision no formato 4:3, o que amplifica claustrofobia do cativeiro. O aspect ratio acadêmico comprime espaço horizontal, fazendo o porão onde Michelle está aprisionada parecer ainda mais sufocante, transformando enquadramentos de Teddy caminhando em círculos nervosos em composições que enfatizam sua própria prisão psicológica. Ryan satura cores de maneira que lembra fotografia documental dos anos 1970, especialmente trabalhos de Frederick Wiseman ou cinema-vérité de D. A. Pennebaker, criando textura granulada que empresta autenticidade quase jornalística a eventos absolutamente bizarros. Há paralelo interessante aqui: o filme explora abelhas como metáfora central, e Ryan filma colmeias reais com mesma atenção documental que dedica aos humanos, sugerindo equivalência entre sociedades de insetos rigidamente estruturadas e hierarquias humanas igualmente inflexíveis.
Essa atenção às abelhas não é acidental. O título Bugonia deriva do grego antigo (bous “boi” + gonē “nascimento”), referindo-se a ritual místico de gerar abelhas espontaneamente do corpo de boi sacrificado, simbolizando renascimento e renovação através de destruição. A prática, descrita por Virgílio nas Geórgicas, encapsula temática central do filme: colonização, exploração e relações parasíticas disfarçadas de simbiose. Teddy acusa a corporação de Michelle de exterminar abelhas globalmente através de pesticidas, mas ele próprio mantém colmeias e extrai mel, explorando trabalho das abelhas para sustento. Assim como humanidade depende de abelhas para polinização e sobrevivência agrícola, alienígenas (se existirem) dependeriam de exterminar humanidade antes de colonizar a Terra. É estrutura de dominação recursiva: cada nível da hierarquia explora o abaixo enquanto é explorado pelo acima, e revolução apenas rearranja quem ocupa qual posição sem abolir hierarquia em si.
Ryan fotografa essas camadas de exploração através de design de produção contrastante que funciona quase como linguagem própria. A casa de Teddy e Don é caos visual: objetos acumulados compulsivamente, recortes de jornal com teorias conspiratórias cobrindo paredes, equipamentos improvisados de tortura construídos de sucata, figurinos sujos e exagerados de Teddy que comunicam marginalização econômica. Em contraste direto, os ambientes corporativos onde Michelle transita são minimalismo rico: linhas limpas, espaços vastos, branco imaculado pontuado por madeira cara e vidro temperado. É arquitetura que comunica poder através de vazio controlado, onde cada objeto presente foi selecionado intencionalmente e tudo desnecessário foi eliminado. A fotografia acentua esse contraste através de temperatura de cor: tons quentes, mas sujos na casa de Teddy, frios e estéreis nos escritórios e casa de Michelle. Quando ela é trazida para o porão, esse choque estético visualiza a queda de classe forçada, com a CEO acostumada a controle total reduzida a prisioneira em espaço que não consegue dominar através de capital cultural ou econômico.
O roteiro de Tracy demonstra habilidade característica em diálogo, especialmente nos confrontos verbais entre Teddy e Michelle, que funcionam como duelos ideológicos. Há cena no segundo ato onde ela tenta aplicar técnicas de negociação corporativa (escuta ativa, validação emocional, procura por win-win solution) a situação de cativeiro, e Teddy desmonta cada estratégia por reconhecê-las como manipulações aprendidas muito provavelmente em workshops de gerenciamento. É sátira afiada sobre como linguagem terapêutica e práticas de mindfulness foram cooptadas por cultura corporativa para mascarar relações fundamentalmente exploratórias. Mas Tracy ocasionalmente cai em armadilha de tornar subtexto em texto, fazendo personagens articularem temas que funcionariam melhor implícitos. Há excesso de diálogos em momentos em que suspense de cativeiro com violência física não seguiria de forma realista. Confrontos que deveriam ser tensos e abreviados se estendem em debates quase acadêmicos sobre neoliberalismo, teoria da conspiração e epistemologia. É texto excessivamente lúcido para situação de vida ou morte, expositivo demais para filme de diretor conhecido por confiar na inteligência da audiência.
Esse é sintoma de problema maior: Bugonia é mais convencional que qualquer filme anterior de Lanthimos, e não apenas narrativamente. O tom fica preso entre dois mundos, satisfazendo completamente nenhum. Para fãs do diretor grego esperando estranheza característica de Dente Canino ou O Sacrifício do Cervo Sagrado, o filme é excessivamente explicado e emocionalmente direto. Para audiências mainstream buscando thriller acessível, há suficiente absurdismo e violência gráfica para alienar. Lanthimos sempre se destacou por criar personagens que falam e se comportam de maneiras contraintuitivas, evacuando convenções de naturalismo para expor mecanismos sociais normalmente invisibilizados. Em Dente Canino, membros da família recitam diálogos de forma mecânica porque foram literalmente reprogramados linguisticamente. Em O Lagosta, personagens falam em monotonia porque vivem em sociedade que eliminou autenticidade emocional. Em O Sacrifício do Cervo Sagrado, a família de Colin Farrell e Nicole Kidman se comporta como humanoides ocos porque representam classe alta que performou humanidade por tanto tempo que esqueceu como senti-la genuinamente.
Em Bugonia, ironicamente filme sobre possíveis alienígenas disfarçados como humanos, todos os personagens são demasiadamente realistas se pensarmos na assinatura de Lanthimos. Teddy, Michelle e Don falam como pessoas normais, reagem emocionalmente de formas reconhecíveis, exibem psicologia crível. É escolha defensável: Tracy e Lanthimos aparentemente queriam que a audiência se identificasse com os personagens para tornar dilemas morais mais impactantes. Mas ao fazer essa concessão, o filme perde precisamente o distanciamento brechtiano que tornava obras anteriores do diretor tão perturbadoras. Quando O Sacrifício do Cervo Sagrado apresenta família burguesa enfrentando maldição supernatural, o vazio emocional dos personagens torna horror mais agudo porque vemos pessoas que deveriam amar uns aos outros incapazes de acessar amor genuíno mesmo diante de aniquilação. Em Bugonia, vemos pessoas emocionalmente funcionais em situação extraordinária, o que é menos interessante dramaticamente.
Essa “americanização” se manifesta também na estrutura narrativa mais convencional. Save The Green Planet!, o original sul-coreano, começa como comédia absurda e gradualmente revela camadas de tragédia sem nunca abandonar tom irreverente. O diretor Jang Joon-hwan não teme o tonal whiplash, oscilando vertiginosamente entre gags físicas, violência gráfica, melodrama familiar e ficção científica genuína. Há investigação policial paralela que funciona como comentário sobre autoridades incompetentes, subplot romântico que complica lealdades, e energia frenética que mantém audiência perpetuamente desorientada quanto a qual gênero estão assistindo. Culturalmente, sul-coreanos tendem a ser mais efusivos expressivamente, e Jang utiliza isso: personagens gritam, choram, riem histericamente, transitam entre extremos emocionais com velocidade que ocidentais frequentemente leem como excesso mas que dentro de contexto cultural funciona como autenticidade.
Lanthimos remove quase toda essa efusividade, mas, crucialmente, não a substitui com sua própria estranheza característica. O resultado é filme que se sente comedido demais para ser genuinamente perturbador ou hilário. Há momentos de humor negro que funcionam, mas não com frequência suficiente para estabelecer tom consistente de comédia sombria. Há violência que deveria chocar, mas é filmada com distância que previne catarse ou horror genuínos. O filme não é suficientemente estranho para ser Lanthimos clássico nem suficientemente direto para ser thriller mainstream eficaz.
Essa tensão se reflete na montagem de Yorgos Mavropsaridis, colaborador de longa data do diretor. A estrutura de três atos marcada por letreiros de contagem regressiva auxilia transições, mas Mavropsaridis luta para estabelecer temporalidade clara. A montagem perde noção de quanto tempo Michelle está em cativeiro; certos momentos sugerem horas, outros dias. Ela transita por estágios de luto que normalmente requerem semanas em sequências que parecem acontecer overnight. Flashbacks de Teddy são inseridos com timing que frequentemente os torna redundantes, explicando visualmente coisas que Plemons já comunicou através de performance. Há sensação de que mais material foi filmado e cortado, deixando lacunas que a montagem tenta cobrir através de elipses nem sempre elegantes.
O ritmo geral tende ao lento, especialmente no primeiro ato que dedica tempo substancial estabelecendo rotina doméstica de Teddy e Don antes do sequestro. É escolha deliberada: Tracy e Lanthimos querem que audiência compreenda humanidade de Teddy antes de vê-lo cometer atos monstruosos. Mas há redundância; cenas de Teddy cuidando de abelhas, preparando refeições modestas, assistindo a vídeos conspiratórios poderiam ser condensadas sem perder impacto emocional. Para espectadores familiarizados com Save The Green Planet!, há frustração adicional: elementos que Jang desenvolveu (investigação policial, subplot romântico, fuga do CEO que gera suspense real) são minimizados ou eliminados. O xerife local aparece brevemente, revelado ter histórico de bullying com Teddy, mas não há desenvolvimento dessa relação. Teddy o assassina para eliminar obstáculo, e então… nada. Nenhuma consequência, nenhuma investigação subsequente, nenhum payoff dramático. É como se autoridades públicas não existissem nesse universo, convenção narrativa que serve ao minimalismo do filme, mas quebra verossimilhança.
Na verdade, o roteiro exige suspensão substancial de descrença em múltiplos pontos que serão detalhados na seção de spoilers. Basta dizer que eventos logisticamente impossíveis acontecem porque a trama requer. Isso não seria necessariamente problemático em filme mais estilizado, onde lógica realista está subordinada a lógica temática ou emocional. Mas Bugonia ainda tenta ser suficientemente realista, e isso torna esses furos distrações.
A trilha sonora de Jerskin Fendrix (que também compôs para Pobres Criaturas) e o design de som são competentes sem serem memoráveis. Fendrix evita grandiosidade orquestral, optando por texturas eletrônicas discretas que sugerem desconforto sem dominarem cenas. Há momentos de silêncio eficazes, especialmente durante torturas onde ausência de música força audiência a confrontar violência sem mediação emocional. O design de som trabalha sutil, mas eficazmente, especialmente sons de abelhas que permeiam trilha: zumbidos que começam quase subliminarmente e gradualmente se tornam presentes até audiência perceber que estava ouvindo-os por minutos. É técnica que mimetiza estruturas de pensamento conspiratório: padrões que parecem emergir do ruído de fundo, conexões que parecem óbvias retroativamente, mas que exigem atenção seletiva para serem “descobertas“.
Mas trilha e som nunca incomodam, exageram ou pontuam demasiadamente, o que é positivo. Não há momentos de brilho particular, mas também não há falhas que distraem. É trabalho de artesãos experientes servindo narrativa sem chamar atenção para si mesmos, o que em contexto de filme frequentemente barulhento e visualmente ocupado é escolha sábia. Porém, frise-se que o filme original utiliza a música “Somewhere Over The Rainbow” de forma que a faixa quase se torna personagem do filme, e percebe-se pela opção o quão satírico este queria realmente ser.
A misantropia do filme, sua aparente conclusão de que humanidade talvez mereça extinção, é simultaneamente seu aspecto mais ousado e mais problemático. Há paralelo interessante com Inferno (2013), thriller de Dan Brown onde protagonista deve impedir vilão de liberar vírus que exterminará metade da população global. Tanto aquele livro quanto Bugonia são obras que se apresentam como colocando existência humana em jogo, mas foram produzidas por autores que parecem partir de certa concordância com que extinção seria solução aceitável. Quando se inicia de premissa de que humanidade é predominantemente destrutiva, parasítica, incapaz de mudança real, torna-se muito mais fácil construir narrativa que justifica ou ao menos compreende genocídio. Brown eventualmente recua, fazendo seu herói impedir o plano, mas não antes de dar ao vilão discursos convincentes sobre superpopulação e colapso ecológico. Lanthimos não recua.
Essa posição filosófica é coerente com trabalhos anteriores do diretor. Dente Canino termina ambiguamente com filha mais velha possivelmente escapando para mundo que pode ser pior que a prisão familiar. O Lagosta oferece final igualmente ambíguo onde amor genuíno pode ser impossível em sociedade que o transformou em commodity. O Sacrifício do Cervo Sagrado força pai a assassinar membro da própria família, escolha que não redime ninguém. Lanthimos nunca ofereceu catarse ou esperança fáceis. Mas em obras anteriores, a misantropia parecia observação clínica sobre patologias sociais específicas. Em Bugonia, sente-se mais como conclusão a priori: humanos são irredutivelmente terríveis e seu fim é, portanto, merecido. É misantropia que se torna óbvia demais, insincera precisamente porque não ganhou o direito através de desenvolvimento dramático. O filme nos mostra CEO exploradora, teórico conspiratório violento, xerife que foi bully, mãe negligente, mas esses são tipos, não indivíduos suficientemente desenvolvidos para justificar condenação de espécie inteira.
ALERTA DE SPOILERS
A revelação do terceiro ato é que ambas as interpretações estão parcialmente corretas: alienígenas realmente existem e se infiltraram na sociedade humana. Os aliens são entidade coletiva que tem observado Terra por milênios, esperando momento oportuno para colonização. Eles não precisam de corpos individuais porque operam como consciência distribuída (sugerindo paralelismo com colmeias de abelhas que o filme estabeleceu meticulosamente). Descobrem que não podem simplesmente exterminar humanos e tomar o planeta porque humanos danificaram ecossistema tão extensivamente que Terra não mais sustentaria vida alien sem remediation maciça. Portanto, decisão é tomada: exterminar humanidade de qualquer forma, não para colonização imediata, mas para permitir que o planeta se recupere ao longo de séculos.
Lanthimos filma a extinção humana através de plano que dura aproximadamente cinco minutos. Câmera se move lenta e deliberadamente através de ambientes agora silenciosos, mostrando corpos onde caíram: pessoas em leitos de morte em hospitais (extinção foi misericórdia), moradores de rua em seus acampamentos improvisados (extinção foi libertação de vida brutal), trabalhadores em fábricas poluídas (extinção foi escape de exploração), crianças em playgrounds (extinção foi… aqui o filme oferece sua provocação mais severa, sugerindo que até inocentes são melhor servidos por não-existência que por vida em mundo irreparavelmente quebrado). O plano é acompanhado por silêncio quase total, apenas som ambiente de vento e ocasionais pássaros. A câmera não julga, não comenta, apenas observa. A composição de cada frame é cuidadosamente construída para comunicar não horror, mas… ambiguidade. Alguns corpos parecem ter morrido em agonia, mas muitos parecem pacíficos.
É sequência de coragem estética extraordinária porque Lanthimos se recusa a dizer como devemos nos sentir. Não há trilha sonora manipuladora, não há diálogo explicativo, não há personagem sobrevivente processando trauma para audiência vicariamente. Apenas observação prolongada de extinção que o filme sugere pode ser tanto tragédia quanto necessidade. É provocação genuína: ao forçar audiência a sentar com essa imagem por vários minutos ininterruptos, Lanthimos faz uma pergunta que não pode ser facilmente descartada: se humanidade está causando extinção em massa de outras espécies, destruindo planeta que sustenta toda vida, operando em estruturas de exploração que causam sofrimento incalculável, qual é argumento moral contra nossa própria extinção?
É questão que filmes de ficção científica ocasionalmente levantam, mas raramente levam a sério. O Dia em que a Terra Parou (1951) apresentou aliens dispostos a exterminar humanidade para proteger outras espécies inteligentes na galáxia, mas recuou quando humano demonstrou potencial para mudança. Melancolia (2011) de Lars von Trier terminou com extinção, mas era sobre depressão individual e aceitação de morte, não julgamento moral sobre humanidade. Fim dos Tempos (2008) de Shyamalan sugeriu natureza se defendendo, mas tonalmente confuso demais para entregar sua premissa. Bugonia é raro por apresentar extinção não como falha a ser evitada, mas como solução que pode ser defendida.
Sobre o roteiro, há elementos que não se resolvem satisfatoriamente. Teddy sequestra Michelle de sua própria mansão sem aparentemente disparar nenhum sistema de segurança. Câmeras de vigilância, que bilionários certamente possuem, estão ausentes ou não funcionais sem explicação. Seu carro de luxo, que indubitavelmente teria GPS e múltiplos sistemas de rastreamento, é dirigido através da cidade sem gerar alerta. O xerife local, após ser assassinado por Teddy, simplesmente desaparece da narrativa. Não há investigação, não há consequências. É como se autoridades não existissem. Teddy mais tarde escapa de hospital após acidentalmente assassinar a própria mãe (em cena terrivelmente trágica que Plemons vende completamente), e novamente, não há busca policial, não há nada. Ele pedala pela cidade completamente ensanguentado sem ninguém notando ou reagindo. Na verdade, ruas estão consistentemente vazias, como se não existisse mais ninguém na cidade além dos protagonistas. É convenção narrativa que serve ao minimalismo do filme, mas que quebra verossimilhança repetidamente.
Sobre a Michelle, o mais frustrante é que Yorgos não aproveita oportunidade de explorar dimensão de gênero ao transformar CEO de homem (no original) em mulher. Não há engajamento com como sexismo se intersecta com poder corporativo, como mulheres em posições de liderança frequentemente precisam performar masculinidade tóxica para serem levadas a sério, como exploração de gênero opera diferentemente. Michelle poderia ter sido estudo sobre como patriarcado sobrevive mesmo quando mulheres individuais alcançam poder, mas o filme não está interessado nessa análise. É uma simples mudança no gênero sem explorar implicações.
FIM DOS SPOILERS
Bugonia é filme de contradições produtivas que nunca as resolve completamente. É simultaneamente mais acessível e menos distintivo que trabalho anterior de Lanthimos. É visualmente magnífico, mas narrativamente convencional. É tematicamente ambicioso, mas ocasionalmente pesado demais em entrega. É bem atuado, mas alguns personagens ficam subdesenvolvidos. É lento, mas não tedioso, violento, mas não gratuito, engraçado, mas não hilário, trágico, mas não devastador. Ocupa espaços intermediários que frustram tanto fãs hardcore do diretor quanto audiências mainstream buscando thriller direto.
Mas há grandeza real nos melhores momentos, especialmente na sequência final que justifica sozinha as concessões anteriores. Lanthimos e Tracy construíram narrativa que permite leitura conspiratória funcionar simultaneamente como verdade literal e como metáfora para estruturas reais de exploração. As abelhas, tema recorrente que inicialmente parece decorativo, revelam-se núcleo conceitual: sociedades organizadas hierarquicamente onde trabalhadores existem para servir rainha, onde indivíduos são sacrificáveis para continuação de colmeia, onde o que parece simbiose (abelhas polinizam, humanos as protegem) é na verdade exploração mútua (humanos roubam mel, abelhas podem atacar). Bugonia, o ritual de gerar abelhas de boi morto, sugere que nova vida necessariamente surge de morte, que sistemas não podem ser reformados, mas apenas substituídos, que renascimento exige destruição do anterior.
Comparado com Save The Green Planet!, Bugonia perde energia caótica e liberdade tonal, mas ganha em coerência temática e impacto visual. O original sul-coreano é filme mais divertido, mas também mais disperso, tentando ser tantas coisas que ocasionalmente dilui impacto de qualquer uma. Lanthimos foca, escolhe seus elementos cuidadosamente, e quando funciona (especialmente no final) alcança profundidade que Jang sugeriu, mas não desenvolveu completamente.
Comparado com filmes anteriores do próprio Lanthimos, Bugonia perde estranheza que tornava Dente Canino perturbador, não possui riqueza visual de época de A Favorita ou Pobres Criaturas, e carece da tensão sufocante de O Sacrifício do Cervo Sagrado. Mas tem ambição diferente: fazer Lanthimos mais acessível sem trair completamente sua sensibilidade. É compromisso difícil, e resultado não satisfaz completamente nenhum lado. Mas há valor em tentar, e há momentos em que funciona magistralmente.
Não é obra-prima. Mas é filme raro que tenta algo difícil e alcança sucesso parcial suficiente para justificar tentativa. É produto de cineasta excepcional fazendo concessões ao sistema industrial maior, mas mantendo suficiente de sua voz para que o resultado seja inequivocamente dele. É lembrança de que mesmo Lanthimos diminuído ainda produz cinema mais interessante que maioria de diretores em melhor forma. No fim, Bugonia é sobre reconhecer que estamos todos presos em sistemas exploratórios (capitalismo, colonialismo, hierarquias sociais) que causam sofrimento, mas dos quais não conseguimos escapar porque estão integrados a toda estrutura de existência moderna. É sobre perceber que teorias conspiratórias são simultaneamente falsas e verdadeiras: não há cabal literal de reptilianos controlando governos, mas há estruturas de poder que operam precisamente como conspiração, apenas mais difusas e mais devastadoras por serem sistêmicas ao invés de intencionais. É sobre contemplar extinção não como horror a ser evitado, mas como fim potencialmente necessário para o planeta que quer continuar sustentando vida.































