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Gabriela Amaral vem se estabelecendo como uma grande representante do cinema de horror brasileiro. Em seu segundo longa-metragem como diretora – ela já havia desenvolvido roteiros para produções como Quando Eu Era Vivo -, após o excepcional Animal Cordial, a cineasta retorna ao gênero com a estreia de A Sombra do Pai. Em sua passagem por Belo Horizonte, ela conversou com o Boca do Inferno, exalando conhecimento e simpatia, e falou sobre seus filmes, suas influências, a construção de suas narrativas e de seus personagens, o atual cenário do gênero, projetos futuros e até Frankenstein! Confira com exclusividade:

Boca do Inferno: Animal Cordial, seu primeiro longa, é um filme visceral e bastante crítico em relação a classes sociais. Vemos em A Sombra do Pai uma narrativa mais intimista, também com críticas sociais. Inserindo bem esse contexto sócio-político em suas narrativas, você constrói esses roteiros dialogando com o cenário atual?

Gabriela Amaral: Quando a gente fala de criação, o impulso que te leva a escrever a história ou imaginar uma história, muito provavelmente, será contextual. Isso não quer dizer que é político no sentido de operacionalizar a política dentro da narrativa. O que acontece muito comigo é: minha válvula de expressão está sempre mais ligada ao sentimento; o imediato é o sentimento, o posterior é a análise. Eu estava vivendo em 2015 aquele momento de polarização política extrema e a guerra entre ideologias que levou ao golpe da Presidente Dilma Rousseff. Como cidadã eu senti muita ira – sou uma pessoa passional – e dessa passionalidade que vem de um evento histórico político-social nasce a minha vontade de construir ou de me expressar através de personagens que vivam esse embate. Eu nunca me aproximo de um evento sócio-político de uma forma sociológica ou da ciência política, pois eu não sou isso. Sou uma artista, então me aproximo muito através do que sinto, do que me provoca como ser humano. Dito isso, o roteiro de Animal Cordial surge da visceralidade daquelas personagens humanas. E aí, quando você me pergunta da inserção, [eu afirmo que] não existe esse movimento porque essas personagens fazem parte da minha realidade, então elas vão trazer a reboque dos seus dramas o contexto político que elas vivem; é quase indissociável. Em A Sombra do Pai, há uma história que eu acho tão violenta quanto a de Animal Cordial, mas essa violência te provoca, ela não gera catarse e isso é uma questão social. Porque enquanto no Animal Cordial a catarse é perpetrada por um homem de classe média, branco, ou seja, ele pode dar um lance no pôquer e perder tudo, porque ele é privilegiado – por isso é uma narrativa de explosão -, o Jorge de A Sombra do Pai, como personagem, tem uma construção que é socioeconômica; ele não pode dar o lance, porque ele tem tanta responsabilidade nas costas, tem que fazer todo mundo comer naquela casa e ele não tem direito de catarse. Seria muito leviano, por exemplo, falando de política e dramaturgia, colocar este personagem para surtar! É como se ele não tivesse direito do mundo que ele sai a fazer esse movimento. Quando você constrói o personagem, você faz perguntas a todos os lados. O Inácio é um grande vilão, representa muito a classe média surda, egoísta, autoritária, desrespeitosa, mas onde é que estão também as entradas para a humanidade, o que ele sofre também? Então é isso, são dois roteiros que parecem muito distantes, mas que se tocam e estão bem próximos.

Boca do Inferno: A protagonista do filme, Dalva, foi muito bem interpretada pela atriz mirim Nina Medeiros. Você já havia trabalhado com crianças em alguns de seus curtas. Como funciona a construção desses personagens no gênero terror?

Gabriela Amaral: A dificuldade de direção de uma criança em um filme adulto é que você tem que fazer um novo texto que case com o primeiro, que tenha mais a ver com a sensibilidade da criança do que com a sensibilidade do próprio texto – e isso é muito louco! Como isso significa na prática? Eu reescrevi o roteiro inteiro para a Nina, sem as cenas do pai, e eu aproveitava muito da situação que ela vivia no tempo presente no set, pois para a criança o presente é tudo que existe, não existe projeção de futuro, não existe passado, existe o que está acontecendo. Então, as emoções da Nina no set eram muito intensas, de ligação com as pessoas. Conforme os atores iam embora, ou não vinham mais filmar, ela ficava muito emocionada, e eu usava muito isso, além da compreensão da paternidade, que ela tinha de família para reescrever esse roteiro. Então, a criança tem todos os sentimentos, mas os dispositivos são diferentes, não são cerebrais. “Olha Nina, é um filme sobre a adultização da infância”. Isso nunca foi conversado com ela, nem tinha que ser, aliás, eu não converso isso com ator nenhum. Assim, a mesma abordagem que eu tive com a Nina, eu tive com os adultos, porque os atores adultos às vezes chegam armados, cheios de análises conceituais e tal e não vão ao centro da vulnerabilidade; eu acho que a gente é mais vulnerável na infância e isso fica na gente. Isso se desdobra tanto em sombras quanto em traumas, em coisas que não são superadas, e isso é um material muito rico, porque não é resolvido, e tudo que não é resolvido é dramático, então a dificuldade com a Nina foi de ordem do tempo mesmo; era muita coisa pra filmar e crianças têm um tempo de duração diferente do adulto em set, envolvendo resistência.

Boca do Inferno: Vê-se em Dalva responsabilidades de uma sociedade patriarcal, onde a mesma assume um papel de ‘mulher da casa’. Em contrapartida, o pai está inserido em um ambiente onde a ameaça constante de perda de emprego abala o homem ali definido como ‘provedor’ da casa. Como você avalia dentro de sua narrativa a definição desses papéis?

Gabriela Amaral: Você tem esse personagem, Jorge, que é muito complexo, porque a máquina capitalista de produção é tão desgraçada que ela faz com que um comportamento que é prejudicial à família do individuo seja tolerado pela sociedade como um todo, ou seja, Jorge não dá o afeto que a família precisa como pai porque ele está chancelado pelo sistema, que é maior do que ele, a ter que produzir até morrer. Ele vive essa contradição: se por um lado ele é monstro para ela porque ele se exclui, ele também é vítima – ele é um Frankenstein. Ele é um monstro quando a gente pensa no drama da filha, pelas coisas que ele faz com ela, pela ameaça que ele representa. Mas a gente está assistindo ao filme e vendo de onde vem essa monstruosidade, e é como Frankenstein; gente sabe que ele tem bondade, mas a máquina que o criou, o pai, o Dr. Frankenstein, o abandonou à sorte nesse mundo cruel. Então você tem essa ilustração, que poderia cair no perigo de criar uma narrativa burguesa, onde o pai é culpado por tudo – isso é um olhar burguês porque você não considera de onde vem a necessidade prática de ser esse monstro.

Já a Dalva é o retrato de meninas que, na ausência do pai e da mãe, assume esse papel. Às vezes o pai abandona a família, a mãe tem que trabalhar e essa menina vira uma figura materna para irmãos mais velhos. É um amadurecimento tão brutal, que eu nunca vi ser abordado por aqui, a não ser pelo vitimismo, e a Dalva não é uma vítima. Ela até pode ser uma vítima, mas ela não reage como, isso é importante na construção da dignidade desses personagens. É uma personagem digna, não desiste até o último momento, tem fraquezas, chora, mas não precisa ser salva pela madame; ela vai encontrar uma maneira de sobreviver dentro de uma unidade familiar da realidade dela, que é do alcance dela.

Boca do Inferno: Sobre a equipe técnica de seu filme, várias funções são ocupadas por mulheres, entre elas a Direção de Fotografia (Barbara Alvarez), captação de som direto (Gabriela Cunha) e edição (Karen Akerman). Você, como diretora do gênero horror, como vê a mulher no cenário atual do gênero? Não só no Brasil, mas em um âmbito global.

Gabriela Amaral: Eu acho que a questão da mulher no cinema como diretora de horror envolve economia! Uma questão de grana, sim, não uma de sensibilidade. Se você pegar a literatura de gênero, o próprio Frankenstein, da Mary Shelley, foi o primeiro livro de horror feito por uma mulher. Qual a diferença da Literatura para o Cinema? Grana. E trabalho fora de casa. Então a Literatura, que tem inúmeros exemplares femininos, é feita dentro do nicho doméstico e não precisa necessariamente de grana. Se você quer escrever um livro, se tiver o pendor, você vai escrever sem um puto centavo. Se você tiver um pendor pra dirigir o filme, você precisa do mínimo do dinheiro possível pra comprar uma câmera barata e juntar cinco pessoas e comandá-las. Esse lugar de comando não é feminino em todas as áreas de conhecimento e de produção. Então hoje eu acho que a mulher chega ao cinema ao mesmo tempo que a mulher chega à ciência, que chega à matemática, à física, a tudo que era de direito masculino. Porque precisa de hierarquia, precisa de dinheiro, de equipe. Então eu acho que agora por termos mulheres, cuja sensibilidade, no universo feminino, é muito ligado por questões de medo, você não tem noção das bizarrices que a gente pode criar por conta das barreiras que a gente teve no acesso do espaço público. Então essa noção do isolamento na narrativa do horror já é natural da mulher, a noção do descompasso, da desobediência, do horror que traz punição. A mulher nasceu pra escrever história de terror – essa é a grande questão.

Boca do Inferno: Sobre influências dentro da construção de A Sombra do Pai, os fãs do gênero vão perceber homenagens a Stephen King e George A. Romero, mas gostaria que você falasse sobre suas influências não só de A Sombra do Pai, mas também de trabalhos anteriores.

Gabriela Amaral: Duas escritoras de literatura são muito importantes pra mim, que eu leio desde muito tempo, que são a Flannery O’Connor, uma escritora norte-americana. Ela é contista e tem só um romance, escreve no sul dos Estados Unidos racista dos anos 30, 40 em um movimento chamado American Gothic, onde ela aborda as histórias com uma violência… e essa construção da violência dentro dos personagens norte-americanos de bem é uma das minhas grandes influências. Ela não é uma narradora de horror; são narrativas negras dentro da sociedade. A outra é a Carson McCullers, também dessa escola, onde os personagens são tratados a partir da possibilidade da violência, da violência contra a mulher, da violência contra o negro. No teatro tem um dramaturgo chamado Harold Pinter, que eu adoro, que narra algumas coisas nonsenses, quase no limite entre o absurdo e o realismo. E tem Stephen King, Agatha Christie, Clive Baker, que eu cresci lendo e me influenciaram muito. Eu sempre li muita coisa! Eu acho que tem uma coisa da natureza de quem a gente é, quando a gente assume uma sombra, e eu acho que eu fiz isso muito cedo, e você começa a ver o mundo através desse filtro. A partir daí o gênero se desenvolve não por causa de um fetiche, mas porque é assim que se absorve e reinterpreta a vida.

Boca do Inferno: Existe algo de pessoal na construção da personagem Dalva?

Gabriela Amaral: Existe porque eu trabalho com meu inconsciente. Todo artista que trabalha com o inconsciente está colocando algo pessoal na história, mesmo que não saiba. Não é na narrativa! A narrativa é apenas um disfarce, tudo que é aparente pode não ter acontecido comigo, fora assistir filmes. A minha mãe não está morta – até hoje meus pais são casados -, mas as sensações que a Dalva passa em algumas situações… há uma cena da Dalva em que ela se enrola brincando nos lençóis no quintal e minha mãe me disse que eu fazia isso, e ela me xingava porque eu sujava os lençóis. Fiquei completamente arrepiada, pois eu não me lembrava disso. A autobiografia não está nos fatos de uma narrativa, é da ordem do inconsciente, então o que as pessoas acham que é biográfico na narrativa, na verdade é um disfarce, não é racional, é por outro viés.

Boca do Inferno: A estreia de Os Vingadores ocupou 80% das salas de cinema. Diante desse cenário, de espaço, como você avalia a distribuição de filmes nacionais do gênero de horror, tendo em vista que as produções cresceram muito, porém, na contramão, os recentes cortes do governo afetam negativamente a distribuição de algo que estava cada vez mais crescendo?

Gabriela Amaral: O que Os Vingadores deixa claro e escancarado é a necessidade que a gente tem de política pública cultural. Assim como protegem o mercado da gente para a entrada de milho e eletrônicos, precisam proteger o mercado da gente para entrada de filmes, então não faz sentido você colocar 80% das salas… não faz sentido progressista, iluminado, humano, colocar 80-85% das salas com Os Vingadores e empurrar goela abaixo uma história que é para ser vista toda semana! Para ser vista cinco vezes? Ou seja, histórias repetidas me lembram muito propaganda e acho isso tudo muito estranho! Vamos tentar entender o que tem aí, qual é a subliminaridade? Esse tipo de filme não é inocente – acho que o projeto de colonização cultural é muito mais complexo -, mas é um elemento flagrante da nossa falta de política de proteção de cultura. Aí no mesmo momento o que acontece? A cultura no Brasil está sendo vilanizada; os produtores culturais são vagabundos agora, os cortes estão justificados em uma verba que não vai nem arranhar os outros departamentos, mas falam capciosamente que a gente tá gastando muito dinheiro que podia ir para a saúde e para a educação e isso é um absurdo! É uma manipulação de dados que faz parte de um projeto de silenciamento dos espaços de liberdade de pensamento e criação – estamos nesse lugar. Aí você me fala de distribuição de filmes de horror… existe isso? Acho que os filmes de horror entram furando tudo! A gente não tem cultura de recepção de cinema de horror porque nosso público está acostumado com essa colonização do cinema de horror americano, que sim, eu gosto, eu amo, mas que é a história deles, então a gente precisou assimilar isso durante anos e anos e anos, chegando até a pensar: ‘cinema de horror é possível no Brasil?’ Claro que é possível. A gente é sociedade, tem medo, é sombra… a gente é gente… Cinema de Horror é isso, é captar ansiedade. O cinema americano com sua fatura de alta produção determinou que o cinema de horror tenha aquela cara, então para o público que não se debruça sobre essas questões, se vir um filme brasileiro de horror e não encontrar aquilo, automaticamente o filme é ruim. Como é que se reverte isso? Vamos voltar de novo. É a cobra engolindo o próprio rabo; política pública de investimento na disseminação, política pública de produção… esses dois setores estão comprometidos. A partir daí, você tira suas conclusões se estou sendo otimista ou pessimista. São os fatos que eu tenho para lhe dar hoje, que são bastante desanimadores. Sempre há uma luz no final do túnel, senão eu não continuaria nesse ramo.

Boca do Inferno: Projetos futuros?

Gabriela Amaral: Eu filmo ainda esse ano com o Rodrigo Teixeira, mas a produção desse filme específico é privada, de um dos poucos produtores que têm condições de fazer isso, de ter uma grana privada para investir em um filme. Isso aconteceria se houvesse essa política pública, ou seja, se criássemos um mercado aqui iríamos nos manter sem precisar de um mercado exterior, porque é muita gente; se criássemos uma maneira de fazer com que esses filmes entrassem no fluxo cultural de vivência das pessoas… mas não é de interesse, a princípio. Eu faço um filme de exorcismo agora em setembro que se chama “A Cadeira Escondida“. Estou já nele. O querido A Sombra do Pai já ficou para trás, na minha sensibilidade. Estou nele agora, e tenho outros projetos que dependem da liberação da Ancine, que está congelada. Então depois deste filme eu não sei o que vai ser minha vida. Vamos esperar…

A Sombra do Pai será exibido a partir da próxima quinta-feira, nas principais salas da rede Cinepólis, além de outras, em várias cidades do país. Confira a programação e não perca a oportunidade ver esse belo exemplar do nosso cinema de gênero!

Agradecemos a Gabriela pela ótima entrevista que nos deixou ansiosos pelos seus próximos projetos!

Volta pra mim. Volta pra gente.

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3 Comentários

  1. Gabriela sempre tem análises muito sensatas, esclarecedoras. Somos engolidos pela cultura norte americana em diversas áreas e principalmente quando se trata de cinema de horror. Frequentemente o público avalia mal um filme do gênero pois não levou sustos. Foi ensinado a reconhecer um modelo como referência e fazer com que o público identifique e desvalorize isso, é bem difícil – ainda mais com o congelamento da Ancine e desvalorização do cinema, artistas, pensadores. Mas o cenário é ainda mais complexo: até mesmo parte de nossas produções é enviesada, como cópias esdruxulas do modelo norte americano. O que funciona muito bem lá, seja na comédia ou no terror – como por exemplo medo do porão, do sótão… – aqui não faz o menor sentido. Mas é fácil e vende…

  2. “Máquina capitalista”, “burguês”, putz… tava com vontade ver o filme mas depois dessas declarações não passo perto de nada feito por essa diretora.

    1. Mas o que te incomoda Lucas? Explique o motivo por favor.

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