Dentre os cenários que compõem o guia de lugares para se evitar no gênero fantástico, um certo albergue na Eslováquia é um ambiente de tentação e morte. Frequentado por belas mulheres em cômodos atraentes, com piscina aquecida, danceteria e spa, os donos têm uma certa predileção por estrangeiros, principalmente americanos. Basta você deixar seu passaporte na entrada e preencher a ficha, enquanto assiste a cenas de Pulp Fiction numa televisão pequena, para aproveitar o local, experimentando bebidas sedativas e muitas drogas. E o pacote inclui um passeio pelas construções belíssimas de uma cidade que preserva o passado, com pontes e lagoas, com muitas crianças soltas nas ruas, e exposições, seja em um Museu da Tortura ou, para os mais radicais, algo mais intenso em uma fábrica local.
Embora tenha em Cabana do Inferno o seu cartão de visita, pela ousadia sangrenta, claustrofobia e humor ácido, foi com O Albergue, lançado em 2005, que Eli Roth mostrou a que veio. Atraiu elogios e o interesse de Quentin Tarantino, que viu no jovem cineasta uma promessa de personalidade no gênero. Roth havia recebido propostas para dirigir a refilmagem de Aniversário Macabro e O Nevoeiro, além da oferta de realizar um novo filme da franquia O Massacre da Serra Elétrica. Tarantino o aconselhou a desenvolver algo original para não ser lembrado como um diretor de reprodução de continuações e obras conhecidas, tal qual Alexandre Aja. Enquanto nadava na piscina do diretor de Cães de Aluguel, teve a ideia de fazer a sua própria “férias de assassinato“, com a apresentação de um lugar que explora a carne e a dor de seus visitantes em prol de apostas de empresários. Pensou até em um estilo documental, como se desse uma sugestão de que esse local realmente exista, mas acabou optando pelo formato de terror tradicional, elaborando os rascunhos do roteiro naquele mesmo dia.
Tarantino não apenas acompanhou o processo de criação, como assumiu a produção e ainda fez uma ponta no filme – outras notáveis aparições envolvem o próprio Eli Roth e o cineasta Takashi Miike, que conhece muito bem os caminhos das dores provocadas, bastando ver Audição. O longa foi rodado quase inteiramente na República Tcheca, explorando também um hospital desativado em Praga. Com a estreia americana em 6 de janeiro de 2006, O Albergue alcançou uma ótima bilheteria, totalizando mais de US$80 milhões, e boas críticas, à exceção das autoridades da Eslováquia e da República Tcheca pelo modo como a região fora mostrada na produção, deixando quase a entender que todas as pessoas são ruins, assassinas e exploradoras, além da visão sexualizada – como aconteceu por aqui quando lançaram Turistas, lembra? Eli Roth chegou a pedir desculpas em uma carta, mas também acrescentou um curioso argumento: “As pessoas não deixaram de visitar o Texas, apesar dos filmes da franquia O Massacre da Serra Elétrica.”
Houve também os críticos que consideraram realmente o filme como uma caricatura das regiões envolvidas e também do gênero. Um deles, David Edelstein, do New York Magazine, deu ao estilo proposto por Roth a alcunha de “torture porn“, uma expressão que nos anos seguintes iria servir para designar produções de várias épocas pelo conteúdo violento e sexual. A intenção de Edelstein foi desqualificar o longa, mas acabou servindo para rotular o diretor em seus trabalhos seguintes, embora Roth tenha deixado de lado o subgênero. De mau gosto ou curioso, o fato é que Hostel continua sendo um dos destaques da filmografia de Roth, com cenas violentas e de bastante tensão, com grafismo em um enredo que diverte pela sensação constante e desconfortável de insegurança.
A trama já é bastante conhecida. Dois jovens americanos – Paxton Rodriguez (Jay Hernandez) e Josh Brooks (Derek Richardson) – viajam à Europa em companhia de um mochileiro islandês que conheceram em Paris, Oil (Eythor Gudjonsson). A proposta da viagem é fazer Josh superar uma separação, enquanto aproveitam para transar, usar drogas e se divertir. Na passagem por Amsterdã, depois de perderem o acesso ao albergue em que estavam, eles são ajudados pelo desconhecido Alexei, que oferece estadia e sugere que o trio vá conhecer um local na Eslováquia com mulheres bonitas e sexo fácil. Como se percebe, a linha narrativa principal é um emaranhado de clichês, que já serviram a muitas produções do gênero.
Na viagem de trem, eles conhecem um empresário holandês (Jan Vlasák), que confirma o que foi dito por Alexei e ainda causa um estranhamento por tocar na perna de Josh. Ao chegar à Eslováquia, numa região de aparência pacata, com poucas pessoas nas ruas e belas construções interioranas, eles encontram o tal albergue, já sentindo um ambiente tentador, principalmente com a estadia em um quarto já ocupado com duas belas garotas, Natalya (Barbara Nedeljakova, de Sky Sharks, Colheita Maldita: Gênesis e Strippers vs Werewolves) e Svetlana (Jana Kaderabkova). Sem pudor, as garotas os convidam para participar de um spa e uma discoteca, local onde serão drogados um por vez para participar de um outro programa.
Oil será o primeiro a desaparecer. Sem conhecê-lo muito bem, Paxton e Josh suspeitam desse desaparecimento do amigo, mas continuam aproveitando os prazeres locais. É nessa busca por Oil que a dupla irá conhecer as crianças perigosas da região – realmente são meninos de rua, contratados pela produção – e o Museu da Tortura, com a exibição de ferramentas que provocam a dor, sem imaginar que ambos terão oportunidade de visitar um espaço real nas proximidades. Trata-se de uma fábrica de torturas, onde pessoas ricas participam de leilões pela oportunidade de torturar e matar alguém. Até hoje existem lendas sobre a real existência de lugares assim, promovidos por pessoas que querem se aliviar do estresse e da monotonia diária para provocar a dor. É bom tomar cuidado com viagens a lugares desconhecidos…
Assim, a parte final de O Albergue assume um outro estilo de filme, o “survival horror“. Quando Paxton passa a ser uma atração do ambiente, ele precisará de muita sorte para sair vivo dali. E ela acontece, desde o seu vômito depois de sentir muita dor até o momento em que a serra elétrica de seu algoz, com os créditos de “cirurgião alemão” (Petr Janis), irá cortar alguns de seus dedos, permitindo que as mãos fiquem livres. Na fuga, ele conhecerá outros ambientes da fábrica, a empolgação de um cliente americano (Rick Hoffman) e tentará salvar a jovem Kana (Jennifer Lim), mesmo depois desta estar com um dos olhos saltados de sua face. Sem essas facilitações do roteiro, seria muito difícil um herói encontrar meios de correr livremente pelos corredores, pelo elevador e estacionamento – por que não há um sistema de vigilância por câmeras? Roth completou essa falha na continuação.
Considerado apenas um filme de tortura, com bons efeitos de maquiagem e direção, O Albergue é bem mais que isso. Traz momentos de tensão e horror, com sequências que farão realmente o infernauta virar o rosto pelo sofrimento das vítimas torturadas, enquanto se disfarça de roteiro de viagem com a exploração de corpos femininos. Mesmo revisto após mais de quinze anos de sua estreia, o longa continua interessante e divertido, apresentando a melhor fase de Eli Roth, quando ele ainda era uma promessa de renovação no gênero. Para quem não o conhece e os já calejados pela proposta, vale a pena passear novamente pela Eslováquia para tentar resistir às tentações para não terminar como atração de um evento particular.
Em tempo, a Versão do Diretor contém um final alternativo para o filme O Albergue. Confira:
Gosto muito desse filme. Não quero colocar os dois em pé de igualdade, mas eu o comparo com a versão original de O Massacre da Serra Elétrica (apesar de o filme de Tobe Hopper ser melhor), por serem filmes de terror americanos mais “mainstream” que utilizam de cenas de violência extrema. Ou, pelo menos, extrema para os padrões de quem está acostumado com os produções de terror hollywoodianas e não é muito familiarizado com filmes mais barra-pesada, como Holocausto Canibal e Serbian Film.