A trajetória do Gore e do Cinema Violento

4.9
(8)

Desde que o Cinema se estabeleceu como uma janela para o medo, sempre houve o interesse pelo horror gráfico, aquele que transcende o sugestivo na exposição de órgãos, vísceras, desmembramentos, com o sangue jorrando em vermelho intenso. Enquanto o pós-horror (também chamado de “horror elevado“) tenta encontrar seu espaço ao dar profundidade às produções do gênero, há quem prefira corpos destruídos e todo tipo de violência que alimentou os exploitations e deu força a subgêneros como “snuff” e “torture porn“. Dentro dessas categorias, o explícito também recebe a denominação de “gore“, uma das palavras mais digitadas em campos de busca e que acabam trazendo novos leitores ao Boca do Inferno. Mas, afinal, o que seria isso?

Gore é bastante conceitual e sua definição varia de acordo com o próprio espectador. Em outras palavras, o gráfico está no “olho de quem vê“: o que uma pessoa considera “um filme forte” pode não ser para outra, até porque cada qual possui sua bagagem de preferências. O que se torna ponto pacífico é o líquido viscoso vital, não sendo possível apontar uma cena “com gore” se ele não jorrar, o que traz uma associação com o chamado “splatter“. O “espirrar” do sangue sobre os personagens, deixando-os numa vestimenta de morte rubra, é uma das características do “cinema gore“. E o grau de intensidade se faz na associação com feridas pútridas, a visualização de órgãos, entranhas e carne destroçada pelo algoz com sua lâmina afiada ou unhas e dentes, podendo ser um assassino em série, uma criatura insana, um morto-vivo romeriano e, principalmente, um canibal.

Ao público que acompanha a cena, deve-se promover o desconforto. A absoluta imersão diante de um espetáculo grotesco, colocando o infernauta ora como plateia, ora como vítima da condição, é o combustível do cinema violento. Quanto mais realistas forem as sequências, numa transposição de imagens capazes de convencer de sua veracidade, maior será o impacto visual. É o que o diferencia de um estilo de cinema construído com a roupagem do “trash“, provocando o riso pelo desenvolvimento precário de seus efeitos (ou defeitos) especiais. E esta tem o abraço da época de sua realização, o que faz com que uma cena que impressionava há 40 anos possa despertar o bocejo do espectador nos dias atuais, e também da ousadia de seu realizador. Se anatomicamente convincente for o espetáculo, há grandes chances que permita o aplauso de sua repulsa.

Primeiro Sangue Jorrado

A história do horror gráfico já é centenária. Quem acredita que seu pontapé inicial tenha sido A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), de George A. Romero, ou até o posterior Banho de Sangue aka Mansão da Morte (Ecologia del delitto, 1971), de Mario Bava, precisa cavar ainda mais no cemitério do gênero. Embora o horror tenha encontrado sua confecção mais violenta no final da década de 60 e perdurado pelos anos 70 (ciclo italiano de canibalismo) e 80 (proliferação dos slashers), com o apoio da contracultura, há de ser considerar dois nomes poderosos para o estilo: Herschell Gordon Lewis (que, em 1963, fez Banquete de Sangue aka Blood Feast, para muitos a produção pioneira do sangue agressivo) e Lucio Fulci, que, não por acaso, receberam a alcunha de “padrinhos do gore“.

Mesmo os dois sendo os grandes produtores do cinema violento, não foram os que confeccionaram os primeiros exemplares. Lembrando mais uma vez que o gore depende muito da impressão do público e da época de realização, você pode considerar até produções da Hammer (O Vampiro da Noite, de 1958, por exemplo) como os traços iniciais do estilo. Mas o gore é ainda mais profundo. Há raízes no teatro francês Grand Guignol, iniciado em 1897, e que apresentava espetáculos amorais, perturbadores, com enredos macabros e sangrentos.

Em 1916, o épico histórico Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages, de D.W. Griffith, ousadamente trazia duas cenas com pessoas sendo decapitadas, além de outras de combate com lanças atravessando peito e sangue em exposição. Embora a significância para o cinema tenha sido sua força histórica, e tenha se desenvolvido um ano após o controverso O Nascimento de Uma Nação, do mesmo diretor, tais sequências violentas de batalha atraíram plateias e tornaram o filme uma produção de sucesso. É o primeiro respingo de sangue servindo para a construção do cinema exploitation.

Evolução do Grotesco

Enquanto o sangue ainda era visto em preto e branco, ele já era promotor do interesse. Com a evolução do cinema e o uso de cores, o líquido ganhou ainda mais notoriedade, passeando por gêneros diversos, não sendo uma exclusividade do horror. Se em 1958 houve a polêmica do clássico de ficção científica O Horror Vem do Espaço (Fiend Without a Face), de Arthur Crabtree, que trouxe cérebros destruídos, a inclusão da produção no Criterion Collection e como tema de debates no Parlamento Inglês, com o avançar das tonalidades, o choque foi se estabelecendo em filmes diversos. Foi graças a essa ousadia de cineastas exploitations que se desenvolveu a famigerada restrição pelo Código Hays, analisando o comportamento do cinema e a censura em torno do que poderia ou não ser exibido.

Quanto maior a restrição e a inclusão do filme na lista dos “Nasties Movies“, maior era o interesse do espectador. Produtores passaram a testar os limites do censor para ter a honra de exibir em seus cartazes informes sobre sua condição desagradável. Havia uma espécie de disputa pelo impacto, com o gênero gore sendo alimentado por clássicos absolutos como O Massacre da Serra Elétrica (Texas Chainsaw Massacre, 1974), além dos cineastas italianos e a ousadia em matar animais na tela, com o crescimento de artistas do FX como Tom Savini, que havia sido fotógrafo de guerra e usou sua experiência na construção de cadáveres e ferimentos realistas.

Na década de 80, os slashers assumiram o gore como ferramenta de atração. Michael Myers, Jason Voorhees e Freddy Krueger disputaram o interesse dos fãs de horror até o “terrir” tentar abrandar o horror gráfico. Ainda assim, obras sangrentas como Hellraiser – O Renascido do Inferno (Hellraiser, 1987), Re-Animator – A Hora dos Mortos-Vivos (Re-Animator, 1985) e tantas outras mantinham a máquina funcionando em continuações que atravessaram os pouco criativos anos 90 até chegar à geração Jogos Mortais (Saw, 2004), de James Wan, e O Albergue (Hostel, 2005), de Eli Roth, com o desenvolvimento do “torture porn“.

Terror em Casa

O gore realista encontrou sua verdadeira casa nos “snuff movies“, aquelas produções que vinham com a falsa impressão de apresentar mortes reais. Franquias como Faces da Morte, com selos de proibição em vários países, eram consideradas malditas, mas se proliferaram em produtos genéricos, sob a mesma vestimenta. A violência como atração chegava à TV com cortes, ainda que boa parte de sua essência fosse identificada, e serviram para desenvolver programas sensacionalistas, jornais sangrentos como Notícias Populares e muito do interesse que as pessoas hoje procuram na deep web, em grupos de gore de whatsapp e fóruns.

A verdade é que boa parte das pessoas realmente se sente atraída pela morte, pela violência e gore. São as que diminuem a velocidade do carro para visualizar acidentes e abrem a câmera de seus celulares para registrar suicídios e violência doméstica. Não é culpa da Sétima Arte, da falta (ou excesso) de crença religiosa, dos jogos de videogame, literatura extrema, nem muito menos de Griffith, Gordon Lewis, Fulci, dos canibais ou dos zumbis de Romero. É uma cultura atraída pelo chocante, pelo visual e o grotesco. Gostar de produções gore não torna ninguém violento, nem constrói assassinos e gera feminicídios e atos de violência contra animais. Vem da ausência de educação e da falta de respeito pelo próximo, mas não de modelos de cultura.

Assim, a tela pode até respingar sangue em suas roupas, mas não o transformará em um monstro.

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Marcelo Milici

Professor e crítico de cinema há vinte anos, fundou o site Boca do Inferno, uma das principais referências do gênero fantástico no Brasil. Foi colunista do site Omelete, articulista da revista Amazing e jurado dos festivais Cinefantasy, Espantomania, SP Terror e do sarau da Casa das Rosas. Possui publicações em diversas antologias como “Terra Morta”, Arquivos do Mal”, “Galáxias Ocultas”, “A Hora Morta” e “Insanidade”, além de composições poéticas no livro “A Sociedade dos Poetas Vivos”. É um dos autores da enciclopédia “Medo de Palhaço”, lançado pela editora Évora.

2 thoughts on “A trajetória do Gore e do Cinema Violento

  • 26/05/2023 em 13:29
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    Excelente artigo! Mas tenho uma dúvida: de quais filmes foram retiradas as imagens que ilustram o texto? A primeira é de Fome Animal, e a segunda eu acho que é de algum filme da trilogia O Albergue (me corrijam se eu estiver errado), mas não identifiquei as outras três.

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      26/05/2023 em 15:56
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      Opa, tudo bem? A primeira imagem é realmente do Fome Animal. A segunda, de O Albergue 2. A terceira é de Banquete de Sangue, do Lewis. A quarta, da ficção O Horror Vem do Espaço. E a última, do clássico Hellraiser.

      Abs

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