3.3
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A Maldição da Mansão Bly
Original:The Haunting of Bly Manor
Ano:2020•País:EUA
Direção:Mike Flanagan, E.L. Katz, Axelle Carolyn, Yolanda Ramke, Ben Howling, Liam Gavin, Ciarán Foy
Roteiro:Mike Flanagan, Henry James, Diane Ademu-John, Julia Bicknell, Michael Clarkson, Paul Clarkson, James Flanagan, James Flanagan, Rebecca Klingel, Leah Fong, Angela LaManna, Laurie Penny
Produção:Leah Fong, Kathy Gilroy
Elenco:Victoria Pedretti, Oliver Jackson-Cohen, Amelia Eve, T'Nia Miller, Rahul Kohli, Amelie Bea Smith, Tahirah Sharif, Benjamin Evan Ainsworth, Henry Thomas, Carla Gugino, Calix Fraser, Kate Siegel, Matthew Holness

Depois de explorar as assombrações da Residência Hill, com inspiração na clássica literatura de Shirley Jackson, The Haunting of Hill House, a aposta seguinte do bem-sucedido cineasta Mike Flanagan foi a de visitar outra morada através da controversa A Volta do Parafuso, de Henry James. Era compreensível a delicadeza do processo de adaptação, tendo em vista o insuperável Os Inocentes, de 61, e toda a carga ambígua do texto original, que permitia interpretações até mesmo ousadas pelas possibilidades apresentadas. Na trama, a Srta. Giddens aceita trabalhar na Mansão Bly, um dos terrenos mais grandiosos dos campos ingleses de Essex, para cuidar de duas crianças, os órfãos Miles e Flora, para somente começar a acreditar que eles estão sob influência de assombrações. Sem trazer uma resposta absoluta, o autor induz os leitores a trabalhar com a imaginação, nessa mistura aterrorizante de sedução e ingenuidade.

Como conduzir uma versão ampliada da obra original, sem desmerecer sua essência? Flanagan apostou apenas em manter a espinha dorsal de A Volta do Parafuso para desenvolver um caminho próprio, com o apoio da dramaticidade e do romance, sem perversão e ousadia. Funcionou para boa parte do público, que enalteceu o trabalho a partir de um dos bordões da pequena e talentosa Flora (Amelie Bea Smith): “perfectly splendid“. E é realmente uma produção de aspectos técnicos incríveis, com um elenco espetacular e uma narrativa dinâmica, porém não chega ao Mar de Azov na comparação ao texto de Henry James – que provavelmente se incomodaria com a versão rasa de sua obra – e ao hall assustador de A Maldição da Residência Hill. Há falhas nessa adaptação livre que não devem ser ignoradas.

Em 2007, no norte da Califórnia, estão acontecendo os preparativos para um casamento, que inclui um jantar em família. Enquanto discutem sobre possíveis assombrações do casarão novo, uma moça (Carla Gugino, de Jogo Perigoso, 2017) pede a palavra para relatar um caso sobrenatural – algo como fizera Douglas no texto original. As ações são transportadas para 1987, em Londres, na entrevista de emprego da “au pairDani Clayton (Victoria Pedretti, que, como boa parte do elenco, também esteve em A Maldição da Residência Hill), que tenta convencer o contratante, Henry Wingrave (Henry Thomas, de Apanhador de Pesadelos, 2020), de sua capacidade de lidar com duas crianças, uma vez que possui experiência como professora. Como na obra de James, ele pede que não seja incomodado de maneira alguma durante o período de estadia na mansão Bly, e a jovem parte para a região, conduzida pelo “faz tudo principalmente na cozinhaOwen (Rahul Kohli). Assim que avista o vasto terreno da propriedade, ela sugere, tal qual suas outras versões, que possa caminhar até a casa, conhecendo assim a graciosa Flora, o educado Miles (Benjamin Evan Ainsworth) – que já fora expulso do internato – e, por fim, a simpática governanta Hannah Grose (T’Nia Miller).

Enquanto conhece as ambientações “perfeitamente esplêndidas“, durante uma tour comandada pela garotinha, Dani deixa transparecer um fantasma pessoal, em aparições sempre no espelho, com o brilho dos olhos, numa caracterização bem interessante e aterrorizante. A preceptora fica sabendo que deve evitar um local da mansão, que pertencia aos pais de Flora e Miles, mortos em um acidente, e também transitar à noite. É claro que tais determinações não serão seguidas, o que permitirá que ela encontre talismãs de proteção confeccionados por Flora e saiba que a última moça que trabalhou na mansão, Rebecca Jessel (Tahirah Sharif), morreu no local. Além ter ciência do desaparecimento do terrível Peter Quint (Oliver Jackson-Cohen, de O Homem Invisível, 2020), affair de Rebbeca, ao roubar joias da família, um detalhe que não irá surpreender os fãs do filme de 1961.

Após conhecer a jardineira, Jamie (Amelia Eve), e perceber algumas reações estranhas das crianças, como a de trancá-la no armário e caminhar para fora da casa durante as madrugadas, Dani logo percebe que há mais fantasmas transitando no local, como a incompleta Dama do Lago e uma criança sem rosto. Diferente de sua versão literária, ela não precisará convencer ninguém de que está havendo influências, com suas teorização sobre os acontecimentos. A partir de flashbacks – muitos, aliás -, todas as pontas são amarradas: o passado dos envolvidos, das assombrações, da casa, a expulsão de Miles da escola… tudo é didaticamente mostrado, sem dar margem à imaginação do espectador. Só para lembrar, em Os Inocentes, a primeira pergunta do tio à preceptora, antes de contratá-la, é sobre se ela “tem imaginação“. Infelizmente, como produto americanizado, A Maldição da Mansão Bly não deixa escapar nada, nem dupla interpretação ou possibilidades. Está tudo ali.

Desse modo, chega a incomodar os diálogos entre assombrações, sua busca por encontrar meios de sair da casa, a cartilha para possuir os jovens (não são cochichos pelos cantos, mas possessões mesmo), evidenciando as índoles alternadas. Por essa exagerada exposição, o medo é descaracterizado. Cenas apavorantes em Os Inocentes como a mulher de preto do outro lado da lagoa ou a brincadeira de esconder até a segunda aparição de Peter Quint, no reflexo, são perdidas pelo melodrama didático. O roteiro se mantém bem construído, com destaque para o episódio que apresenta as irmãs Viola (Kate Siegel, esposa de Mike Flanagan e esteve em quase tudo que ele fez) e Perdita (Katie Parker, de Absentia, O Espelho), numa narrativa à parte bem desenvolvida, apesar das repetidas sequências de “fechou os olhos….abriu os olhos“.

Ao final, com algumas boas revelações e a própria sentença da narradora de que se trata de um relato de romance e não de fantasmas, alguns equívocos do roteiro saltam à tela. Para não estragar a surpresa de quem ainda não viu a minissérie, deixo o alerta de que o próximo parágrafo irá conter spoilers agudos.

Dentre os percalços narrativos, assim que a identidade da contadora da história é revelada, são difíceis de ignorar algumas situações mal explicadas. Por exemplo, por que a assombração de Viola conseguiu se afastar da mansão no corpo de Dani e os demais fantasmas, como o do Peter Quint, não? Como a jardineira sabia dos encontros dos fantasmas, alguns até no espaço restrito da mansão? Como toda a situação envolvendo Viola, como o de estar presa em um quarto e numa rotina de ida até o lago, era conhecida pela narradora? E como ela sabia que a sra. Groose havia sido empurrada no poço se no momento não havia mais ninguém além de Miles, e ele não se lembra do ocorrido? E por que o Tio Henry e até Owen não perceberam na narração da “estranha” sobre o que se tratava, se os adultos não perderam a memória?

Mesmo com tantas dúvidas deixadas pela produção e a necessidade de expor todos os detalhes, além de não ser toda essa obra genial que estão expondo por aí, A Maldição da Mansão Bly ainda merece uma conferida. Não tem a direção completa de Flanagan, que desta vez dividiu com outros seis diretores – Ciarán Foy (A Entidade 2, 2015), Liam Gavin (A Dark Song, 2016), Ben Howling e Yolanda Ramke (Cargo, 2017), Axelle Carolyn (Tales of Halloween, 2015) e E.L. Katz (Channel Zero, 2018) -, mas é bem realizada, carismática e divertida. Com o protagonismo da ótima Victoria Pedretti (também da série Você), vale a pena conhecer o interior da mansão Bly ainda que não disponha da atmosfera assustadora de Os Inocentes e nem o conteúdo reflexivo de Henry James.

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2 Comentários

  1. “por que a assombração de Viola conseguiu se afastar da mansão no corpo de Dani e os demais fantasmas, como o do Peter Quint, não?”
    Quando a Viola entrou no corpo da Victoria Pedretti(rsrs), a maldição foi quebrada, e todas as pessoas que ela matou tiveram seus espíritos livres da mansão. Isso é falado no último episódio. Mesmo os mortos que morreram de morte natural, como a Hannah e a Rebecca.

    “Como a jardineira sabia dos encontros dos fantasmas, alguns até no espaço restrito da mansão?”
    Quando alguém conta uma história numa obra de ficção, eu procuro pensar que vários fatos são preenchidos apenas para o espectador, não quer dizer que o personagem que está contando a história saiba de tudo mesmo.

    “Como toda a situação envolvendo Viola, como o de estar presa em um quarto e numa rotina de ida até o lago, era conhecida pela narradora?”
    A Viola ficou presa no corpo da Dani, então, acredito eu, ela conhecia as memórias dela e, posteriormente, repassou esses acontecimentos para a Jamie.

    “E por que o Tio Henry e até Owen não perceberam na narração da “estranha” sobre o que se tratava, se os adultos não perderam a memória?”
    Não reparei na reação do Henry, mas o Owen coloca a mão no ombro da Jamie e a fita por um curto instante antes deixar a sala. Aparentemente, ele só se deu conta de quem era quando ela começou a contar a história. De qualquer forma, pq diabos eles externariam o segredo deles para os outros convidados e, especialmente, a Flora(a qual eles queriam esconder essa história)?

  2. Muito bem analisado. Principalmente em se tratando da narrativa. Vejo muito em textos atuais, contos na maior parte das vezes, essas falhas em narradores em primeira pessoa, narradores que contam o que não viram, que dizem o que uma determinada personagem está pensando, e o pior de tudo a meu ver: narradores que morrem no final. Sua abordagem está perfeita em todos os sentidos. É uma boa série, mas esses escorregões não consigo deixar passar e, por mais que eu tente, não consigo me convencer de uma explicação para eles, por mas fantasiosa que essa explicação seja.

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