O Diabo de Cada Dia (2020)

4.7
(3)
O Diabo de Cada Dia
Original:The Devil All the Time
Ano:2020•País:EUA
Direção:Antonio Campos
Roteiro:Antonio Campos, Paulo Campos, Donald Ray Pollock
Produção:Max Born, Jake Gyllenhaal, Riva Marker, Randall Poster
Elenco:Bill Skarsgård, Tom Holland, Michael Banks Repeta, Haley Bennett, Kristin Griffith, Sebastian Stan, Riley Keough, Jason Clarke, Harry Melling, Pokey LaFarge, Eliza Scanlen, Robert Pattinson, David Atkinson

Havia uma grande expectativa em torno dessa adaptação da interessante obra de Donald Ray Pollock, O Mal Nosso de Cada Dia. Não apenas pela essência do conteúdo, ao envolver religiosidade e a natureza da maldade, como também pelo elenco relacionado à produção. Se a direção de Antonio Campos poderia não empolgar, por se tratar de um cineasta com mais especialidade em produções para a TV, e o roteiro pertencia ao estreante Paulo Campos, por outro lado o trailer motivava com rostos como o de Bill Skarsgård (o Pennywise de It), de Tom Holland (Homem-Aranha), de Jason Clarke (Cemitério Maldito) e até o de Robert Pattinson (O Farol). A possibilidade de transpor para a tela a literatura agressiva de Pollock era um desafio a ser conferido, uma vez que seria preciso transmitir ao público toda a frieza/ingenuidade dos personagens e explorar os principais pontos do livro.

A boa nova é que o O Diabo de Cada Dia se sai bem em boa parte de sua tarefa: faz um trabalho justo e coerente, ainda que brando e sem muita ousadia. As principais diferenças são facilmente notadas, seja na própria narrativa reduzida – mesmo para uma produção de mais de duas horas -, na maneira como o destino de alguns personagens é selado e principalmente na ausência do grotesco. Por outro lado, uma das falhas da obra de Pollock é corrigida ao não precisar de muitos exemplos para definir a falta de caráter de certos personagens, assim como a desnecessária divisão das narrativas em partes, sem protagonismo. Ademais, é possível perceber que os pontos mais relevantes foram mantidos, com menos suspense e mais dramaticidade e causando um maior estranhamento pelas coincidências.

O longa começa de maneira parecida. Durante a Segunda Guerra Mundial, o soldado Willard Russell (Skarsgård) encontra o general Miller Jones ainda vivo, mas crucificado pelos japoneses. Depois do tiro de misericórdia, ele retorna para casa em Coal Creek, mas antes conhece a garçonete Charlotte (Haley Bennett) por quem se apaixona. De maneira interessante, no mesmo restaurante é possível ver outros personagens que serão importantes para a trama, como os assassinos em série, o fotógrafo frustrado Carl (Clarke) e a perdida Sandy (Riley Keough), irmã do xerife Lee Bodecker (Sebastian Stan). Willard e Charlotte se casam, tendo como filho Arvin (Michael Banks Repeta), que já sente os primeiros contatos da maldade ao ver o modo como o pai lida com dois caçadores, esperando a oportunidade certa para se vingar.

Nos sermões do excêntrico Roy Laferty (Harry Melling), que atira aranhas sobre si, com o acompanhamento do primo deficiente físico Theodore (Pokey LaFarge), que tem um papel menos importante no filme, há o contato do pastor com a religiosa Helen (Mia Wasikowska). Eles se unem, e ela engravida de Lenora (Eliza Scanlen), para depois encontrar seu fim assassinada pelo próprio marido, que acredita ter o poder de ressuscitar os mortos. No livro, é possível perceber com mais nitidez a insanidade de Roy, assim como o dia em que ele acorda acreditando ter dons divinos e o próprio Theodore, que nutre uma paixão por ele, sugere que ele faça o teste com a esposa ao invés de um animal qualquer.

Depois de assassinar Helen, Roy foge da cidade para logo pedir carona para Carl e Sandy, que usam da ingenuidade desses pedintes como modelo de fotografias, perversão e morte. Infelizmente, essa aceleração do destino de Roy – que no livro é visto em outra cidade, tentando uma outra vida até próximo do fim, após a morte do primo – encerra prematuramente um dos personagens mais perturbados de Pollock. Quando Charlotte apresenta sinais de uma doença fatal, Willard sugere orações forçadas com o filho em um crucifixo improvisado num vale próximo, como parte de seu trauma com o general, até resolver sacrificar animais para pedir pela salvação divina da esposa. Com a descrição das carcaças banhando o crucifixo, a literatura fere ainda mais ao mostrar Willard agindo contra um homem, na esperança que um sacrifício maior tenha efeito.

Com a morte de Charlotte e o suicídio do pai, os anos avançam com o crescimento de Arvin (agora Holland) e de Lenora, que sofre bullying na escola e terá a defesa violenta de seu meio-irmão. Mas nada será mais incômodo do que a chegada de um novo pastor, o reverendo Preston Teagardin (Pattinson), que usa dos preceitos religiosos para corromper meninas a terem relações sexuais com ele. Enquanto no livro, são vários os exemplos de garotas que visitam o assento de seu veículo, a versão para o streaming já parte para o contato dele com a inocente Lenora, o que irá afetar os brios de Arvin e o colocará na rota de Carl, Sandy e posteriormente do corrupto Lee Bodecker.

Como se pode notar, há vários personagens importantes, com caminhos próprios até que o destino os colocam na mesma estrada. Funciona bem na literatura por permitir a exploração detalhada que irá configurar suas trajetórias. É impossível, por exemplo, não sentir incômodo das investidas de Preston quando até a própria literatura que o define expõe termos mais chulos; assim como cada um dos crimes cometidos pelos assassinos da estrada. O ciúmes que envolve o casal é que acaba traçando o que irá acontece no último ato, mas que é mostrado de maneira rápida e sem empolgação no filme. Outra mudança importante acontece no encontro de Arvin e Preston, com mais facilidade de compreensão de suas atitudes ao confrontar o amadurecimento do jovem.

Provavelmente, O Diabo de Cada Dia teria um resultado mais satisfatório como uma série da Netflix. Seria possível explorar todas as nuances narrativas e entender a composição dos personagens para compreender suas ações futuras. O longa, apesar de bem feito, é mais carregado no drama do embate entre personagens ingênuos e perturbados do que na crítica aos excessos da religião, como se o diabo do título fosse diferente de sua concepção detalhista. De qualquer forma, vale ressaltar a boa produção, os aspectos técnicos como figurino e transposição da época, a construção do elenco e a bela fotografia, ainda que o roteiro não tenha o mesmo poder narrativo das páginas sangrentas do escritor.

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Marcelo Milici

Professor e crítico de cinema há vinte anos, fundou o site Boca do Inferno, uma das principais referências do gênero fantástico no Brasil. Foi colunista do site Omelete, articulista da revista Amazing e jurado dos festivais Cinefantasy, Espantomania, SP Terror e do sarau da Casa das Rosas. Possui publicações em diversas antologias como “Terra Morta”, Arquivos do Mal”, “Galáxias Ocultas”, “A Hora Morta” e “Insanidade”, além de composições poéticas no livro “A Sociedade dos Poetas Vivos”. É um dos autores da enciclopédia “Medo de Palhaço”, lançado pela editora Évora.

3 thoughts on “O Diabo de Cada Dia (2020)

  • 01/12/2020 em 12:53
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    Gostei bastante do filme, baseado em um livro, que aliás, fiquei bastante interessado em ler-lo. Por mais filmes assim e menos remakes e super-heróis (arghhh!).
    4 caveiras.

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  • 09/10/2020 em 00:28
    Permalink

    Da devoção fervorosa dos homens que acaba se tornando a sua própria ruína, ao falso moralismo de líderes e pregadores religiosos. Thriller psicológico com final bem amarrado. Eu particularmente gostei. Não sei o porquê do “tedioso” pra alguns, hehehe.

    Resposta

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