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Todas as críticas positivas recebidas pelo longa Entrevista com o Demônio (Late Night with the Devil, 2023) são válidas: trata-se realmente de um filme do estilo “found footage” ou “mockumentary” (falso documentário) bem interessante ao propor um cenário alternativo, no caso, um programa de televisão sensacionalista dos anos 70 como o registro de um pesadelo “real” envolvendo possessão demoníaca e assombrações. Contudo, passou distante de ser inovador, se levar em consideração o divertido A Hora do Exorcismo (The Cleansing Hour, 2019) e, principalmente, uma das produções mais polêmicas e – dependendo do seu grau de envolvimento – assustadoras já realizadas: Vigília Paranormal (Ghostwatch, 1992).

Sim, foi realizada em 1992. Para quem considera A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999) como um longa criativo de horror ao estilo falso documentário, deveria conhecer essa produção da cineasta Lesley Manning, equiparada à polêmica e ao pânico estabelecido pelo famoso episódio de narração em rádio da obra “A Guerra dos Mundos“, realizada por Orson Welles em 1938. A diferença é que Ghostwatch foi televisionado e envolveu jornalistas, técnicos de TV e apresentador verdadeiros, depoimento de pessoas comuns e desconhecidas, sem que o espectador tenha sido avisado com antecedência sobre a brincadeira.

Para vocês terem uma ideia da genialidade do longa, ele foi ao ar pela BBC1 na noite de Halloween, e feito em um formato que parecia uma transmissão ao vivo. Assim, milhares de espectadores telefonaram para o canal desesperados, acreditando que estavam diante de comprovações fantasmagóricas da existência do sobrenatural. Em um fenômeno curioso, muitos desses contatos alertavam sobre eventos que teriam acontecido em suas residências durante a transmissão, como uma reação em cadeia ou impressões causadas pelo que estavam assistindo. A enxurrada de reclamações e telefonemas continuaram no dia seguinte, e o canal foi criticado pelos tabloides britânicos e diversas mídias, com boatos ainda mais perversos sobre o destino dos envolvidos no programa.

Devido a histeria popular, a TV britânica nunca mais exibiu o filme, realizadores foram obrigados a dar entrevistas informando que tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto. Mas, já era tarde: 34 acusações de consequências relacionadas ao programa foram feitas. Além de estresse pós-traumático em várias pessoas, um dos processos mais conhecidos envolveu o operário Martin Denham, de 18 anos, com dificuldades de aprendizado, e que se suicidou cinco dias após a exibição de Ghostwatch: como a casa dele possuía um problema de aquecimento no encanamento, os canos bateram forte na noite de Halloween, que o transtornou de tal maneira que, possivelmente, não fora capaz de suportar, deixando um bilhete para a mãe e o padrasto: “se houver fantasmas, eu estarei … com você sempre como um fantasma“.

O que há de tão assustador assim em Vigília Paranormal para ter gerado tanta polêmica e comoção, influenciado o cinema de falsos documentários e ter servido de inspiração não assumida para A Bruxa de Blair e tantos outros? A proposta é realmente muito boa, assim como a realização. Não se trata apenas de um programa sensacionalista sobre casos sobrenaturais, mas toda uma montagem que favoreceu a proposta. E Manning foi ainda mais visionário ao inserir falsas e “verdadeiras” assombrações no decorrer da produção, algo copiado na série de Mike Flanagan, A Maldição da Residência Hill, e também em Entrevista com o Demônio. Assim, fica o desafio ao infernauta mais atento: caçar as aparições, os fantasmas escondidos no filme – há fontes que dizem ter oito, enquanto os realizadores afirmam ter 13. Confesso que encontrei apenas seis deles, mesmo tendo assistido mais de uma vez.

Outra referência assumida é a do Poltergeist de Enfield, trama que foi retratada na literatura e no cinema, em Invocação do Mal 2 (The Conjuring 2, 2016). Não apenas pelo que acontece na exploração de uma assombração numa moradia, como a relação com as crianças e também em uma imagem que copia uma foto do episódio – aquela em que as crianças aparecem saltando na cama. Apesar de se inspirar no episódio, Ghostwatch foi além ao inserir depoimentos de pessoas reais que tiveram experiências estranhas, alternando com telefonemas de ouvintes falsos. Só não foi ainda mais polêmico porque uma ideia de Manning não foi levada adiante: ele pretendia em dado momento colocar um som de apito incômodo, mas inaudível para os humanos, para que os animais domésticos das pessoas que estavam assistindo começassem a se agitar, uivar ou se aproximar da televisão. Imagina o efeito disso nas casas das pessoas que já estavam acreditando em tudo o que estavam vendo?!?

Realizado no formato mesmo de um programa de TV, o roteiro de Stephen Volk apresenta uma edição do “Ghostwatch“, exibido na noite do Dia das Bruxas. O apresentador, Michael Parkinson, conduz a atração, sendo apoiado por Sarah Greene, uma repórter que está em frente a uma casa assombrada em Foxhill Drive. A moradia pertence a Pamela Early (Brid Brennan) e suas filhas Suzanne (Michelle Wesson) e Kim (Cherise Wesson), atormentadas por um poltergeist, denominado pela mais nova como “Sr.Pipes” e que habita o porão do local.

Enquanto Sarah se propõe a passar a noite na casa maldita, do lado de fora uma multidão se aglomera pela expectativa de aparecer na TV, com reportagens realizadas de maneira bem humorada por Craig Charles. Parkinson alterna as chamadas entre o que acontece na casa, na rua, na investigação nos estúdios da especialista Dra. Lin Pascoe (Gillian Bevan), além dos telefonemas e depoimentos. Tudo é feito de maneira realmente convincente, nas matérias apresentadas, nas falhas técnicas, nas interrupções do apresentador para atividades estranhas, a exploração de recursos como o de apagar as luzes, a correria do repórter para chegar a um ponto e colher depoimentos sem cortes, a mudança de estúdio, as câmeras afixadas na casa…a dinâmica funciona perfeitamente e se encaixa na proposta. E tem, claro, os falsos e reais arrepios.

Só para mencionar um, sem estragar a diversão do espectador: em dada cena, as meninas estão dormindo e uma delas acorda à noite e se afasta do quarto. Momentos depois, uma pessoa telefona para o estúdio e diz ter visto uma aparição no vídeo. O apresentador então pede para voltar a gravação até onde estaria o fantasma…e ele está lá. A especialista encontra uma forma de justificar a aparição, sem influência sobrenatural, porém aquilo desperta arrepios que serão retomados em outras aparições, justificando que a anterior não era falsa. Uma ideia fantástica e aterrorizante!

A identidade do Sr.Pipes é aos poucos contada pelos relatos do público, e o passado é ainda mais perturbador do que se imagina. Para completar, sons de gatos são ouvidos na residência, móveis se agitam e a câmera continua flagrando coisas que as pessoas ali presentes não estão vendo. O que parecia só um programa como qualquer outro vai se revelando um retrato pavoroso de manifestações sobrenaturais, explorando os recurso de áudio e câmera! Para um melhor aproveitamento de Ghostwatch, uma imersão direta no medo, recomendo que você assista sozinho em casa, com as luzes apagadas!

Com todas essas qualidades e curiosidades, é de se estranhar que Vigília Paranormal não tenha a mesma fama de A Bruxa de Blair e [REC], e nem tenha sido lançado em DVD no Brasil. Trata-se de um filme de potencial assustador e que propõe um grande nível de entretenimento, superior a Entrevista com o Demônio. As polêmicas e a censura britânica impediram que outras brincadeiras similares fossem feitas e até mesmo uma continuação até o lançamento de A Bruxa de Blair, que copiou a ideia de um falso documentário, com recursos como o de explorar a identidade verdadeira dos envolvidos. Daniel Myrick e Eduardo Sánchez negam que tenham sido influenciados pelo filme ou pelo seguinte, Abdução: Incidente em Lake County (Alien Abduction: Incident in Lake County, 1998), mas as referências são claras.

Vigília Paranormal vale – e muito – a sua curiosidade e apreciação. Infelizmente, não está em nenhum streaming, mas não é tão complicado encontrá-lo para baixar em sites de compartilhamento de vídeos por aí. Para aqueles que curtem filmes “found footage” e histórias de fantasmas, Ghostwatch é puro deleite sobrenatural e bem melhor que todos esses programas sensacionalistas que somos obrigados a ver ainda na televisão aberta.

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