![]() Tudo em Família
Original:Choyonghan kajok / The Quiet Family
Ano:1998•País:Coreia do Sul Direção:Jee-woon Kim Roteiro:Jee-woon Kim Produção: Elenco:In-hwan Park, Mun-hee Na, Kang-ho Song, Min-sik Choi, Ho-kyung Go, Yun-seong Lee, Cheol-ho Choi, Ka-hyeon Jang, Jae-yeong Jeong |
Alguns infernautas diriam que o que define uma família são os laços sanguíneos, ou seja, possuir algum grau de parentesco. Outros que o significado de família estaria mais relacionado a viver sob um mesmo teto ou ser parte de um grupo cujo vínculo seja afetivo. Talvez todos concordem que a noção de pertencimento e o acolhimento de seus membros seja de fato, o essencial.
No cinema do gênero horror, estamos habituados às bizarras famílias disfuncionais representadas nas produções norte-americanas, como os canibais incestuosos de Quadrilha de Sádicos (1977, de Wes Craven) ou O Massacre da Serra Elétrica (1974, de Tobe Hooper) ou mesmo as perturbadoras relações entre mãe e filho em obras clássicas como Psicose (1960, de Alfred Hitchcock) e Sexta-Feira 13 (1980, de Sean S. Cunningham).
Famílias problemáticas não são exatamente raras no cinema fantástico de horror e suspense, ainda que sejam estereotipadas e quase um arquétipo para o gênero, em especial quando nos referimos aos vilões. No entanto, na comédia macabra Tudo em Família, produção sul-coreana de 1998, o que torna a experiência do público diferenciada é justamente o que legitima e fortalece a conexão entre os personagens: a espontaneidade com que resolvem juntos todos os problemas que vão surgindo, ainda que as soluções sejam duvidosas pela quase irracionalidade ou pela violência aplicada. É uma cumplicidade natural e extremamente orgânica, mas inquietante para o espectador, que mesmo aceitando todas as condutas dos personagens como verdadeiras, afastando qualquer resíduo de descrença, certamente se incomodará; é neste momento que ele será arrastado para uma das armadilhas narrativas que o longa impõe: uma certa indignação fomentada pela pouca sensibilidade demonstrada por uma simples família coreana, e entenda aqui, família que não é constituída por vilões, ou pelo menos não vilões na concepção mais tradicional da palavra.
Tudo em Família (Choyonghan kajok, no original ou The Quiet Family, em seu título adotado para distribuição internacional) é o longa-metragem de estreia de Kim Jee-woon, versátil cineasta coreano que, num futuro não tão distante, brindaria-nos com obras irretocáveis como Medo, 2002 e Eu Vi O Diabo, 2010. Impossível não comentar que Kim Jee-woon, junto a outros realizadores como Bong Joon Ho (de O Hospedeiro, 2006 e do vencedor do Oscar Parasita, 2019), Na Hong-jin (de O Lamento, 2016) e Park Chan-wook (de Old Boy, 2003 e A Criada, 2016), se não foram os principais responsáveis, ajudaram muito a impulsionar a produção cinematográfica da Coreia do Sul, que hoje é reconhecida globalmente como uma das mais importantes do gênero, sempre destacada pela inventividade e pela qualidade quase inquestionável.
O enredo de Tudo em Família, também de autoria de Kim Jee-woon, segue os infortúnios de uma família que, em busca de melhores condições de vida, muda-se para as montanhas. O local, apesar de isolado, parece ideal para que os Kangs empenhem todas as suas economias, sonhos e esforços em um novo e promissor empreendimento: uma pousada. É uma oportunidade única que não deve ser desperdiçada, pois a iminente construção de uma estrada próxima deve levar uma enorme quantidade de pessoas até a região, ou seja, haveria uma grande perspectiva de hóspedes para a pousada. Porém, passado algum tempo, com diversos atrasos na construção desta nova estrada, nenhum cliente chega até o local, já que o acesso não é nada fácil. Mas eis que uma noite um caminhante apresenta-se para hospedar, trazendo algum alívio à família que andava já um tanto desanimada. O inesperado ocorre quando o hóspede inaugural comete suicídio em um dos quartos. O patriarca toma a controversa decisão de enterrar o corpo no meio da mata, antevendo que a polícia não acreditaria na inocência da família e que uma investigação afastaria qualquer possibilidade futura de atrair novos hóspedes. Esta é somente a primeira fatalidade que desencadeia uma série de acontecimentos singulares envolvendo novos e excêntricos clientes, conspirações, mortes suspeitas, tentativas de estupro, investigadores com intenções segundas e muitos cadáveres enterrados na floresta.
O roteiro escrito por Kim Jee-woon, de forma harmônica e inusitada, embaralha elementos cômicos, dramáticos e de horror. É uma trama original que, em sua simplicidade, transborda uma espécie de humor ácido amparado principalmente no estranhamento causado pela sucessão de ações absurdas dos personagens; ações consumadas sempre em benefício da família. E apesar do conflito se intensificar a cada desdobramento destes atos, há uma curiosa reversão de expectativa, convertendo o suspense criado em uma naturalidade de leveza assustadora.
Além da direção precisa que sustenta a combinação de gêneros e mantém o público em tensão constante, outro destaque que assegura a experiência positiva do espectador é o desempenho muito acima da média do elenco. Além do elevado entrosamento, logo de início chama a atenção as presenças dos talentosos Song Kang-ho, futura estrela sul-coreana que será conhecida internacionalmente pelos formidáveis Memórias de um Assassino (2003) e o anteriormente citado Parasita (2019), interpretando o filho jovem, delinquente e pervertido; e também Choi Min-sik, de Eu Vi o Diabo (2010) e Oldboy (2003), vivendo o tio divertido e sempre disponível. Park In-hwan (de Sede de Sangue, 2009) no papel do patriarca e Na Moon-hee (de A Voz de um Assassino, 2007), interpretando a avó, igualmente colaboram na composição de personagens cativantes e memoráveis, que rapidamente estabelecem a bizarra dinâmica familiar dos Kangs.
Já em relação ao visual, o capricho está precisamente na sobriedade e economia, cujo comedimento no que diz respeito à violência mostrada contrasta com a intensidade da violência repentina que é narrada. O mesmo vale para a fotografia suportada por uma paleta de tons frios e terrosos, por vezes enevoada, que reverberam uma atmosfera melancólica e de pobreza material.
Há uma camada interpretativa que nos conduz a uma crítica social indireta, representada pelas condições e comportamento da família, que após se mover da cidade grande para as montanhas, se adapta às circunstâncias fazendo o impensável para garantir o sucesso econômico de seu pequeno empreendimento hospedeiro. É importante contextualizar que em 1998, a Coreia do Sul tentava se recuperar de uma recessão que atingiu todo o continente asiático, conhecida como Crise Asiática de 1997. Neste período, as ações e reformas do governo eram amplamente questionadas por vários segmentos da sociedade. Pode-se então entender a trama como uma alegoria desta penosa situação político-econômica por qual o país atravessava.
No caso da trilha sonora, ela é composta principalmente por temas instrumentais criados pelo compositor Cho Yeong-wook (de O Motorista de Táxi, 2017), que incluiu também o clássico Moment Musicaux Nº 3 in F Minor, de Franz Schubert. Estas canções ajudam intensificar o clima bucólico, complementando o cenário rural onde acontece toda a ação. Contudo, é surpreendente a presença das composições americanas, como Wild Saxophone e Ubangi Stomp, da banda americana de rockabilly Stray Cats, além da hilária I Think I Love You, do The Partridge Family (banda americana criada para o sitcon de mesmo nome exibido nos anos 70 pela ABC, conhecido por aqui como Família Do Ré Mi) tocada na sequência final e nos créditos. Estas últimas canções afrontam propositalmente a ambientação mais contida e opressiva de toda a obra.
Na época de seu lançamento, Tudo em Família foi bem recebido, tanto pelo público local e internacional, como pela crítica especializada, sendo reconhecido sobretudo por sua inovação, em mostras e competições como Festival de Cinema de Sitges (Espanha, 1998), Festival de Cinema de Puchon (Coreia do Sul, 1998), Festival de Cinema de Rotterdam (Holanda, 1999), Festival de Cinema de São Paulo (Brasil, 1999) e Festival Internacional de Cinema do Porto (Fantasporto de 1999, onde superou o japonês Audition, de Takashi Miike e recebeu o prêmio de melhor filme). Uma curiosidade é que, alguns anos depois, o trabalho de Kim Jee-woon iria ser revisitado em uma refilmagem não-oficial dirigida pelo próprio Miike, no famigerado e musical A Felicidade dos Katakuris (2001).
Existem vários motivos para assistir Tudo em Família. Seja para identificar os traços de engenhosidade e talento do então “novato” Kim Ji-woon, o auspicioso cineasta hoje reconhecido internacionalmente, em uma obra que não envelheceu nada, mesmo passado mais de duas décadas. Ou pela experiência cinematográfica intrigante e imprevisível de um humor mórbido, trágico e por pouco cruel, de uma típica família tranquila, que quer apenas prosperar unida. Enfim, independente do motivo, é uma produção indicada para todo entusiasta da Sétima Arte, seja iniciado ou não, na cinegrafia sul-coreana.