1618
Original:1618 Ano:2022•País:Brasil Autor:César Bravo•Editora: Darkside Books |
Algo que pode ser encontrado tanto na ciência quanto na natureza é a chamada Proporção Áurea. Imagine o seguinte cenário: pegue um fio e corte em duas partes de tamanhos diferentes, em seguida meça cada uma delas. Divida o valor da parte mais comprida pelo valor da parte mais curta. O resultado – um número infinito – deverá ser igual à divisão do valor total do fio pela parte mais comprida que, em teoria, deve ficar próximo de 1,618. Basicamente, essa é a tal da proporção áurea, e foi descrita pela primeira vez pelo matemático grego Euclides, enquanto que foi o arquiteto e matemático Phidias quem empregou pela primeira vez tal conceito (e por isso a letra grega phi que representa essa proporção). Diretamente ligada a isso está a Sequência de Fibonacci, uma sequência numérica infinita que se forma pela soma dos dois números anteriores (1, 1, 2, 3, 5, 8… e por aí vai). Se dividirmos o número de maior valor pelo seu antecessor, descobrimos que a sequência tende à proporção áurea. Quanto maior o número da sequência, mais perto de 1,618 será o resultado dessa divisão e, resumindo para poupar vocês de como é possível chegar a isso, nota-se que phi é considerada uma espiral perfeita.
Talvez o querido leitor infernauta esteja se perguntando o motivo dessa mini aula de matemática gratuita e, aparentemente, desnecessária (e eu juro que não tem nada a ver com a minha área de formação). Alguns mais atentos certamente já notaram que a proporção áurea e o nome do livro estão mais do que interligados. César Bravo veio para explodir cabeças, agregar conhecimento e abrir novos horizontes com 1618. E toda essa explicação não foi apenas para justificar o título do livro, tem muito mais coisa conectada no meio dessa loucura.
Saindo da conhecida cidade de Três Rios, vamos conhecer sua vizinha, a não tão simpática Terra Cota. Ainda se recuperando da pandemia do coronavírus, com o comércio voltando a abrir, seus habitantes ainda são assolados pelas consequências financeiras, perdas de amigos e familiares e do pouco que restava da sanidade durante esse duro período, agarrando-se ao que podem para sobreviver. Alguns encontraram conforto na religião, e até mesmo um pequeno e obsoleto rádio poderia ser considerado uma boa companhia para aqueles mais velhos e solitários, ouvindo as pregações diárias e rezando para as bênçãos caírem sobre si. Não é nem preciso dizer que, quando as igrejas retomaram seus cultos, diversos fiéis estavam rapidamente ocupando seus lugares e ávidos por ouvir a Palavra pessoalmente. A igreja do pastor Belmiro Freitas, conhecido por suas pregações acaloradas, começou a ser uma das mais frequentadas da região, especialmente depois de afirmarem que o homem falava diretamente com Deus e Jesus Cristo.
Como se a doença que ainda assola o país não fosse desgraça o suficiente, os moradores de Terra Cota começaram a receber mensagens anônimas em seus celulares. Praticamente ao mesmo tempo, todos os aparelhos apitavam para notificar o mesmo conteúdo obscuro: vídeos expondo os segredos sujos dos cidadãos. Máscaras de falsa moralidade começaram a cair, o pânico se instalou em Terra Cota. De orgias a assassinatos, da filha do prefeito ao delegado da polícia, ninguém estava impune dessas misteriosas mensagens sendo espalhadas feito vísceras, revelando o que o ser humano faz de pior quando acha que está seguro no anonimato. Desesperados e, de certo modo, excitados, não largavam seus celulares para não perderem a próxima bomba a ser solta ou apagando coisas comprometedoras. Por causa desses vazamentos, quem não conseguiu lidar com a pressão e vergonha acabou se suicidando, outros foram mortos acidentalmente por olharem seus celulares em momentos inoportunos, e ainda outros foram assassinados. No meio disso tudo, o velho senhor Custódio e seu jovem amigo, Arthur Frias, descobrem que todos os aparelhos eletrônicos estão se comportando de forma estranha, ligando de forma sincronizada, emitindo frequências e chiados incomuns que deixavam animais alvoroçados e, pelo rádio, uma mensagem específica enigmática, com uma sequência numérica, era repetida. Fiéis mais fervorosos recorreram à igreja de Freitas, crentes de que isso era sinal do fim dos tempos, sendo imediatamente acolhidos, acalentados e convertidos à fé cega. Algumas pessoas começaram a afirmar que conseguiam falar com os mortos pelo rádio, jurando que era intervenção divina, outras achavam que eram hackers. As estranhezas e horrores estavam apenas começando.
1618 começa como um suspense que aos poucos ganha algumas notas de terror ao captar o medo da sociedade em ser exposta, e mantém esse tom nebuloso e constante tensão por boa parte da narrativa, tendendo mais para o lado da ficção científica. Aos 45 minutos do segundo tempo temos caos, desespero, horror e confusão (não que antes não tivesse, mas se intensificam ainda mais), tiro, porrada, sangue e bomba. São tantos eventos relevantes acontecendo ao mesmo tempo que o leitor agradece por isso ser um livro e poder acompanhar os acontecimentos separadamente, pelo olhar de cada personagem. De repente, todo o frenesi caótico dá lugar a um horror cósmico botânico (se isso ainda não é um termo, que fique registrado). Você já ficou com medo de plantinhas bonitinhas espiraladas? Bravo vai te fazer lembrar dele cada vez que vir uma flor diferente.
Assim como acontece em VHS e DVD – mas dessa vez com maritacas desvairadas no lugar de uma galinha assassina –, o autor expõe diferentes lados do ser humano de forma ácida; a ganância, a crueldade, o sadismo, o fanatismo e também as mentiras para encobrir todas essas facetas podres. Dessa vez, indo mais além, também aborda e disseca as diferentes realidades, o vício e dependência na tecnologia e como o meio com o qual convivemos ou fomos criados influencia no modo como pensamos e agimos diante de adversidades. O religioso acha que tudo que acontece, por pior que seja, é obra de Deus, o rico tenta encobrir suas sujeiras ou lucrar com a dor alheia, o pobre só pensa no que fazer para sobreviver mais um dia, o cético vai atrás de uma explicação racional, e por aí vai. Em 1618 acompanhamos os mais diversos personagens, sempre com múltiplas facetas, complexos e muito bem trabalhados, abrangendo praticamente todas as camadas da sociedade, sem deixar de lado as críticas sociais e políticas concisas e relevantes que refletem a atualidade. Até o cidadão de bem tem a sua cota de representatividade. Serem justamente os personagens mais odiosos da história é resultado de pura pesquisa e observação.
Aliás, pesquisa é o que não faltou nesse livro. Não apenas descrevendo de forma primorosa a psique humana, também temos conceitos de física, astrofísica, matemática (falei que o primeiro parágrafo não era à toa) e biologia. Certamente é uma leitura para ser feita com muita atenção, cada pequeno detalhe e teoria descrita vai ser útil lá na frente. Vale citar que César Bravo, além de escritor, também tem ciência correndo em suas veias além de sangue e horror. Nota-se todo o cuidado que teve para pesquisar e descrever tais conceitos de forma correta e ainda os incluir em sua narrativa de uma forma criativa e instigante, sem que fique maçante ler sobre ondulatória ou sequências numéricas – claro, quem for da área já não teria esse problema de qualquer modo – em um livro de ficção. Fractais, ondas, espirais e proporções áureas ganham uma nova cara aqui. Tudo tem um motivo e está conectado, principalmente ao título, até mesmo os girassóis citados em algum momento (sim, temos Fibonacci até aqui) fazem parte disso. Talvez até desperte o interesse de alguns por esses assuntos, quem sabe.
As referências também são várias. É possível encontrar alusões às obras de grandes nomes da literatura e cinema, como Alfred Hitchcock, H. P. Lovecraft, Stephen King e Jack Finney. Em alguns momentos o enredo tem ares semelhantes a Invasores de Corpos, em outros pode-se notar alguma influência de A Cor que Caiu do Espaço. Também há referências a ele mesmo, com Três Rios e seus personagens e estabelecimentos sendo citados ao longo da obra e fazendo até mesmo participações especiais. Tudo na mesma frequência e em sintonia.
César Bravo alugou um triplex nas nossas mentes expandindo ainda mais seu universo interiorano amaldiçoado, nos presenteando com uma obra recheada de ficção científica, narrativa visceral, horror e humanidade, onde eu vira nós, seu problema é nosso problema, tudo se conecta e vira um só grande organismo. É um prato cheio para amantes de teorias da conspiração e histórias complexas, sombrias e surpreendentes. A literatura nacional está mais viva e pulsante do que nunca.