A Longa Marcha
Original:The Long Walk Ano:2023•País:EUA Autor:Stephen King, sob o pseudônimo de Richard Bachman•Editora: Suma |
Muito antes de Carrie – seu primeiro livro publicado – nascer, Stephen King escreveu sua primeira história com apenas 18 anos, ainda na faculdade. Assim que começou a ser um autor publicado, suas ideias eram tantas que poderia facilmente publicar mais de um livro ao ano, porém, foi podado por sua editora. Afirmaram que as pessoas não teriam interesse em ler mais de um livro do mesmo autor no mesmo ano e, por isso, vetaram as publicações. King, inconformado por ter sua voz barrada por um motivo tão banal assim, encontrou rapidamente a solução: usar um pseudônimo para fazer mais publicações. Richard Bachman foi o nome escolhido e, entre 1977 e 1984, publicou 5 obras mostrando outro lado seu. Sendo conhecido como mestre (ou rei) das narrativas atuais de horror e mistério, claro que seus livros já são considerados assustadores e alguns até mesmo desesperadores, mas é possível encontrar alguma pontinha de luz e esperança no meio de tanta desgraça. Como Bachman, publicou histórias tidas como angustiantes e sombrias, com uma escrita que não poupa nem mesmo o personagem mais carismático, expondo de uma forma ainda mais crua do que já estamos acostumados a perversidade inerente ao ser humano. Após ter sua “identidade secreta” desvendada por um fã, o autor resolveu explorar sua relação com seu pseudônimo, praticamente um alter ego, e usar como inspiração para a obra A Metade Sombria.
Pensando em trazer para os fãs essas histórias mais cruéis, brutais e perturbadoras de Stephen King, a editora Suma lançou a coleção Os Livros de Bachman e, com revisão de Regiane Winarski, A Longa Marcha não é apenas o primeiro livro escrito por King, como também é a primeira publicação dessa nova coletânea.
Todos os anos, 100 jovens são selecionados para participar de um evento chamado A Longa Marcha, que consiste basicamente em caminhar e caminhar até sobrar apenas um participante. O prêmio do vencedor é o que ele quiser para o resto da vida.
Ray Garraty, um dos participantes, é nosso protagonista. Desde o começo – sob protestos de sua mãe – acompanhamos sua jornada sob seu ponto de vista. Parece um evento muito simples, mas na verdade é de uma crueldade extrema. Os garotos têm permissão de levar lanches de casa, usarem as roupas e sapatos que acharem melhor e é dado até mesmo um manual com recomendações prudentes, entretanto, eles não podem parar. Existe um limite mínimo de velocidade e, caso fiquem abaixo desse limite ou até mesmo parem por qualquer motivo que seja – dores, mal-estar, cansaço, ferimentos, nada disso importa –, recebem uma advertência. Cada participante pode receber até três advertências e, caso exceda esse número, recebe o bilhete. Bilhete para fora do jogo, para fora da marcha, para a morte. Sim, eles precisam caminhar à exaustão até literalmente a morte, de um jeito ou de outro. E todos estão cientes disso desde o momento que se inscreveram para participar, assim como a imensa multidão que vai até as ruas assistir a procissão passar por suas cidades, torcendo enlouquecidos por seus familiares, amigos e favoritos, ou simplesmente vibrando a cada garoto friamente fuzilado.
É uma premissa simples, e totalmente visceral. É aterrador acompanhar a caminhada dos personagens sabendo que 99% deles não irá sobreviver, ver laços se formando como forma de sobrevivência para aguentar aquela dura provação sabendo que nenhum deles jamais se encontrará novamente. E eles também sabem disso, o que torna todo o cenário ainda mais desolador e fascinante. Ao longo da história, vemos a empolgação e confiança de vários se esvaindo para dar lugar à insanidade, à exaustão e à dúvida: “Por que estou participando disso? Por que me inscrevi voluntariamente para morrer?”. Essa pergunta rondará a sua mente tanto quanto a deles durante toda a leitura. Não é simplesmente pelo prêmio, não é apenas para provar alguma coisa, é por algum motivo muito mais profundo que cabe apenas a eles refletir e descobrir e a nós, leitores, conjecturar.
O motivo da Marcha não é explicado. Sabemos apenas que é um mundo distópico mas que, apesar disso, as coisas parecem normais. As pessoas ainda têm famílias, as lanchonetes ainda funcionam, ainda há comida suficiente e escolas. O exército está presente e parece tomar fortes atitudes contra aqueles que falam mal da Marcha abertamente, e é isso. De resto, tudo parece normal. O que aconteceu ou como começou não é citado, e isso difere e muito de outros livros de Stephen King. Não há longas explicações e detalhes, como costuma acontecer em suas obras, e nem descrições minuciosas. Simplesmente é. Nota-se que, com o passar dos anos, sua escrita ficou mais rebuscada e suas ideias mais elaboradas, mas é inegável que há uma grande genialidade por trás de um roteiro tão simples. Temos apenas um ambiente com algumas variações (estrada com pedras, montanhas, chuva, sol, enfim, obstáculos naturais) e, mesmo assim, King – ou melhor, Bachman – consegue criar um cenário tenso e sufocante a cada linha escrita. Ficamos apreensivos esperando a próxima morte, esperando quem receberá o bilhete dessa vez, mesmo sabendo que isso fatalmente irá acontecer em algum momento para quase todos. Conforme a trama avança e algumas amizades são inevitavelmente formadas, temos alguma esperança de que acontecerá uma reviravolta, algum soldado responsável por atirar nos meninos que não estão andando ter alguma compaixão, imploramos por alguma intervenção em um quadro tão brutalmente desolador, mas não estamos lidando com Stephen King. Isso é Richard Bachman. O desespero, dores e abatimento dos participantes são palpáveis, assim como a fria indiferença dos soldados, que acompanham atentamente a caminhada e fuzilam sem dó, e do público, que torce e aplaude ensandecido cada passo, cada tiro, cada morte. Aos poucos, nos conformamos que não há a menor possibilidade de um final feliz ou remotamente satisfatório.
Como fica claro, A Longa Marcha mostra do que o ser humano é capaz, coisa que não é incomum nas histórias de King, mas é retratado de forma ainda mais dura e agressiva nessa obra. Não há figuras mitológicas sombrias ou eventos sobrenaturais para amedrontar o leitor. O verdadeiro terror é mostrado de forma muito mais simples e brutal. O quanto alguém pode desafiar seus limites ao máximo a troco… de que? Um prêmio praticamente inalcançável? Entretenimento para aqueles que se deliciam com o sofrimento alheio? O prazer que muitos têm em ver tragédias e horrores acontecendo com outros é nítido aqui, a excitação que sentem por estar perto de algo chocante, o quanto vibram com a violência. Uma carnificina de jovens é televisionada e tratada como o evento mais esperado e as pessoas aplaudem e comemoram isso. Os próprios participantes escolhem estar ali sabendo que muito provavelmente vão morrer, não são forçados. O quão absurdo é isso? Até onde vão a crueldade, a vaidade e a ambição humanas? Richard Bachman encerra o livro de forma controversa, nos deixando perplexos, com muitas perguntas e diversas reflexões.