4.5
(11)

Infestação
Original:Vermines
Ano:2023•País:Francês
Direção:Sébastien Vanicek
Roteiro:Sébastien Vanicek, Florent Bernard
Produção:Harry Tordjman
Elenco:Théo Christine, Sofia Lesaffre, Jérôme Niel, Lisa Nyarko, Finnegan Oldfield, Marie-Philomène Nga, Mahamadou Sangaré, Mahamadou Sangaré, Ike Zacsongo, Emmanuel Bonami

Em geral, as chamadas “cités” em Paris são conjuntos habitacionais, extremamente populosos, localizados na periferia da cidade. Essas construções são formadas por blocos gigantescos de apartamentos que, nos dias de hoje, abrigam em sua maioria imigrantes e moradores de baixa renda. O cinema tem se beneficiado deste tipo de cenário urbano (ou variações dele), seja pela riqueza multicultural ou pelas adversidades sociais que afligem o local. No gênero horror temos exemplos recentes, como Ataque ao Prédio (2011, o cenário são apartamentos em Londres) ou A Lenda de Candyman (2021, o mesmo tipo de construção, porém em Chicago) ou o se formos mais longe, no ótimo Escravos de Satanás 2: Comunhão (2022), no qual um enorme edifício é parte considerável do opressivo horror sobrenatural presente no longa dirigido pelo cineasta indonésio Joko Anwar.

De volta as “cités” parisienses, é num destes condomínios que reside Kaleb – um jovem que sobrevive como pode. Atualmente ele vende produtos a outros moradores, em uma espécie de mercado informal onde o principal artigo oferecido são calçados de marcas e modelos famosos, populares entre os jovens. Kaleb anda aborrecido, pois nunca se sentiu tão sozinho, sobretudo por ter se afastado de seu melhor amigo e pelos conflitos constantes com a irmã, iniciados após a morte da mãe. Ele ainda tem um hobby incomum: colecionar animais exóticos de pequeno porte. Sua última aquisição é uma aranha miúda e venenosa, de espécie desconhecida, a qual ele dá o nome carinhoso de Rihanna. O problema é que o aracnídeo, que possui as incríveis habilidades de se multiplicar em uma velocidade alucinante e de adaptar o seu tamanho conforme o nível do perigo que enfrenta (algo que certamente deixaria Darwin apavorado), acaba escapando. Em pouco tempo, o conjunto habitacional está infestado por enormes e mortais aranhas. Quando o prédio é isolado pela polícia e a saída dos moradores, proibida, Kaleb inicia uma luta desesperada para se proteger e salvar a irmã, seus antigos amigos e vizinhos.

Vermines (título original), Infested (título internacional) ou Infestação (título português adotado até o momento), é um longa francês dirigido pelo cineasta estreante Sébastien Vanicek. É importante ressaltar aqui que não é tão simples avaliar o resultado do trabalho de um diretor de cinema e que os critérios jamais deveriam ser subjetivos, embora a gente nunca consiga fugir completamente deles. Identificar (e examinar) as marcas autorais do diretor, em outras palavras, sua visão artística e seu estilo, é sempre um caminho válido, inclusive associando o longa analisado a outras obras do cineasta. Aqui não é possível estabelecer esta correspondência, pois Vanicek dirigiu apenas alguns curtas-metragens, pouco ou nada conhecidos por aqui, antes de Vermines. Outro parâmetro válido é ponderar os aspectos técnicos (som, fotografia, montagem, efeitos especiais, etc.). É o diretor quem coordena uma equipe gigantesca e estabelece objetivos e limites para que se alcance um resultado final coeso que respeite a proposta do filme. Alguns leitores dirão que o termômetro ideal é a recepção do público. No entanto, o êxito nas bilheterias é o medidor ideal para o sucesso comercial da produção, entretanto não está necessariamente correlacionado a “qualidade” da obra. Mas em relação à Infestação, o trabalho do francês Sébastien Vanicek é sim, muito bem-sucedido, principalmente no equilibrar adequado do drama proveniente do relacionamento conflituoso dos personagens e do horror causado pela presença dos aracnídeos (potencializado pelo clima claustrofóbico do ambiente); além de dosar a sua crítica social, sem pesar a mão. No entanto, é inquestionável que a comprovação mais efetiva e o reconhecimento do bom trabalho de Vanicek em Vermines seja o projeto recente no qual o cineasta está envolvido: nada menos, nada mais, que um novo spin-off da franquia Evil Dead, produzida por Sam Raimi. A responsabilidade é grande, acima de tudo após o sucesso de A Morte do Demônio: A Ascensão, um dos lançamentos de horror mais comentados de 2023.

O roteiro, co-escrito entre Vanicek e Florent Bernard (que vem de produtos para televisão) é de uma simplicidade despretensiosa e ao mesmo tempo competente, em especial ao explorar duas fobias clássicas do ser humano: o medo de aranha (aracnofobia) e a claustrofobia (o pavor de espaços fechados). Contudo, destaca-se a criação dos personagens, sejam os protagonistas ou coadjuvantes. São personagens verossímeis, com passado e que transbordam imperfeições e limitações, além de demonstrarem anseios por mudanças e resoluções de conflitos internos. O próprio protagonista Kaleb, que assume a posição de líder e herói, tem o comportamento duvidoso e moralmente ambíguo em vários momentos. Em resumo, são personagens humanos, com defeitos e qualidades. Ainda em relação ao roteiro, talvez seja questionável a histeria (literalmente gritaria) excessiva no momento em que o prédio está totalmente tomado pelos aracnídeos. O ritmo frenético, e as decisões ilógicas dos personagens, eleva (ou não) Vermines a um nível que contrasta com o ato inicial, no qual o drama e o suspense são melhores explorados. Já a camada do texto que traz alguma crítica social beira o sutil, apesar de que somente por inserir os personagens em um ambiente onde a pobreza é evidente poderíamos considerar uma alusão às desigualdades sociais e a uma provável desatenção das autoridades. Além deste cenário, o desenrolar da trama coloca o grupo de moradores contra a força policial, que do seu lado enfrenta dificuldades em entender o que está acontecendo e em como lidar com a caótica situação. Para o espectador francês, este confronto população vs. policiais tem um efeito diferente, uma vez que o país viveu um ano (2023) turbulento devido à ebulição político-social, com muitas greves e manifestações que colocaram de lados opostos a polícia e o povo.

Ainda na questão do subtexto social, recentemente o diretor Vanicek afirmou em entrevista que o título Vermines, algo como vermes em português, é uma alegoria à população mais pobre que vive invisível e em péssimas condições nestas regiões mais afastadas dos bairros nobres de Paris. Intenção que não é evidente ao assistirmos ao filme e que se perdeu nas “traduções” do título para o inglês e o português.

Outro acerto de Vermines é a escolha do elenco, em especial o protagonista, interpretado pelo “estreante” Théo Christine (jovem ator francês cuja participação mais conhecida fora da França é em Gran Turismo – De Jogador a Corredor, 2023).  Carismático, Théo Christine é competente ao dar vida a um personagem razoavelmente complexo (e incompleto, como já comentado), que alterna um perfil extravagante de jovem periférico parisiense e o de um quase-herói, atormentado em proteger os seus e se reconectar com os amigos e família. Entre os coadjuvantes, destaca-se o Jérôme Niel (de A Mansão, 2017), que adiciona uma dose de leveza e humor a produção, interpretando o amigo introvertido, mas que, para o bem ou para o mal, terá a sua devida importância para o desfecho do enredo. Mesmo não sendo um elenco conhecido do público americano (e brasileiro), o esforço e o talento dos protagonistas e coadjuvantes garantem performances acima da média para o gênero.

É interessante que os realizadores de Vermines evitem a tendência atual de auto-homenagear o gênero, preenchendo o enredo com referências a clássicos ou movendo o enredo para outras décadas nas quais o próprio “subgênero” (poderíamos chamar de “bug exploitation”?) era mais popular. Embora que não seja um filme autoral, Vanicek não se utiliza destes artifícios, o que traz de alguma maneira mais autenticidade ao projeto. Obviamente é impossível não comparar Infestação ao famoso Aracnofobia (lançado em 1990, um pouco superestimado, na opinião deste que vos escreve). O longa francês, apesar do mesmo plot, homem vs. natureza, tem uma abordagem bem diferente, principalmente na gradação menos impessoal e muito mais intimista e dramática, se revelando em alguns momentos superior à produção da década de 90.

Em relação aos efeitos digitais, o resultado para quando as aranhas atingem um tamanho que não é natural para sua espécie, se não é inteiramente realista, é aceitável considerando as limitações para uma produção cujo orçamento, embora tenha sido em torno de 5 milhões de euros, é inferior à média dos blockbusters americanos. Vale realçar que os momentos realmente angustiantes são exatamente os em que as aranhas são “pequenas” e animais verdadeiros são usados. Entre muitas cenas perturbadoras, temos aracnídeos dentro de sapatos, em buracos na parede, no teto, nos canos, debaixo dos cobertores e até mesmo saindo da boca de suas vítimas.

Contudo, apesar de todos os pontos positivos, não é possível ignorar que o ato final, propositalmente anticlimático, esteja um aquém do que prometia o desenrolar frenético da trama, após a infestação completa do conjunto habitacional. Nada que estrague totalmente a experiência do espectador, apesar de deixar um gosto meio amargo daqueles que sugerem que “poderia ter sido melhor”.

 Vermines teve sua estreia oficial em setembro de 2023 na Semana da Crítica do Festival de Cinema de Veneza, na Itália, recebendo majoritariamente críticas positivas. Posteriormente conquistaria o prêmio de melhor fotografia no Fantastic Fest (festival que premiaria como melhor filme o brasileiro Propriedade, de Daniel Bandeira). Já em abril de 2024, Infestação chegou oficialmente aos Estados Unidos pela Shudder (aquela plataforma de streaming dedicada a produções de terror) e, por enquanto, permanece inédito no Brasil.

Enfim, Infestação é um longa-metragem muito competente, e configurado corretamente as expectativas (entre elas não esperar por uma obra complexa e inovadora), deverá agradar à maioria dos fãs do gênero, pois diverte e assusta, com momentos de muita tensão que aproveitam bem o cenário e os ângulos de câmera para emular um efeito claustrofóbico e angustiante. Não indicado apenas para o leitor que sofre de aracnofobia severa; para estes, é aconselhável evitá-lo.

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3 Comentários

  1. Horrível! Nada se salva. Aracnofobia de 1990 permanece como o melhor do gênero de aranhas

  2. Sinceramente. Mas o q viram nesse filme? Pra mim tava bom até o momento em q a aranha era real. Depois q se tornarem maiores e com um amplo e rápido sistema de reprodução a coisa ficou fantasiada de mais.

  3. Que ótima crítica!
    O tamanho das aranhas, no final do filme, me tirou completamente da proposta. Odiei o desfecho.
    Já os 2 primeiros atos são bem legais.

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