O Silêncio da Casa Fria
Original:The Silent Companions Ano:2020•País:UK Autor:Laura Purcell•Editora: Darkside Books |
“Os olhos se mexeram”.
É sempre importante lembrar que o Horror tem suas raízes no gótico. Boa parte das histórias sobrenaturais que você acompanha na literatura, cinema e outras mídias se desenvolveu a partir dos fantasmas do passado, que se abrigavam em castelos e casarões com baixa iluminação, entre corredores frios e silenciosos, como vultos errantes e sombras vivas. Até se entende que tais enredos macabros foram beneficiados pelas condições em que foram produzidos, pelas atmosferas reais, com seus autores desenhando palavras com o auxílio do tinteiro e de candelabros, observando a névoa que cobria as janelas, tocadas pelos dedos gelados dos galhos secos. Se você consegue contextualizar a obra pioneira de Horace Walpole, O Castelo de Otranto (1764), além de Os Mistérios de Udolpho (1794), de Ann Radcliffe, O Monge (1796), de Matthew Gregory Lewis, e as mais conhecidas como Frankenstein (1818), de Mary Shelley e Drácula (1898), de Bram Stoker, fica difícil imaginar alguém que conseguisse resgatar o estilo de escrita nos dias de hoje.
Pois Laura Purcell não apenas obteve êxito em muitos aspectos como soube despontar calafrios com seu primeiro livro gótico O Silêncio da Casa Fria (The Silent Companions), em mais uma edição caprichada da Darkside Books. Com a ótima tradução de Camila Fernandes, o livro se apresenta na composição de três narrativas, que se unem em uma teia maldita de eventos sobrenaturais, numa crescente bastante assustadora. Quem imagina que a obra trará aparições conhecidas, como os que arrastam correntes ou aparecem no reflexo da janela, irá se surpreender pelo modo como as entidades errantes irão se manifestar, enlouquecendo e ferindo, torturando e matando violentamente, com mais ênfase perturbadora na segunda metade da obra.
Em meados de 1865, Elsie está grávida e acaba de se tornar viúva. Ela então viaja para a propriedade do falecido marido Rupert para tratar de seu sepultamento e decidir se fica com o casarão de sua família, consciente que o dono parecia nunca disposto a ocupar ali. No local, apelidado de A Ponte, com toda a descrição de uma morada gótica, ela convive com os poucos empregados, com suas particularidades que envolvem pouca simpatia e frieza, uma vez que o lugar adquirira fama maldita, além da curiosa prima do marido, Sarah. Esta encontra o diário de Anne, uma mulher que vivera na mansão em 1635, e que fora acusada de bruxaria pelos rituais desenvolvidos com o uso de ervas. Aliás, a própria época, envolta em medos e preconceitos, principalmente com os ciganos, parecia propícia pela narrativa a desencadear vinganças e atos cruéis, como são descritos ao longo das páginas.
Dois cômodos parecem assombrados no local, na época de Elsie: o berçário e o sótão, sendo que este último é o que traz os diários que serão lidos por Sarah, além dos malditos “companheiros“! Populares no século XIX, os tais “companheiros silenciosos” ou “dummy boards” eram esculturas de madeira tridimensionais pintadas a óleo e que muitas vezes retratavam familiares, talvez pela razão do próprio nome: parecerem companhias de pessoas solitárias em casarões. Os que surgem pelos cômodos de A Ponte foram adquiridos por Anne, pensando em algo que pudesse agradar a Rainha, que deverá visitar a morada em um dado momento. Contudo, para Elsie, eles começam a representar os antigos moradores como a mudinha Hetta, uma criança que nasceu com uma deformidade na língua e que pode ter sido vítimas dos rituais concebidos pela mãe.
Além dessas duas épocas retratadas, há uma terceira. O livro já abre com a informação, e depois com algumas outras pinceladas, que Elsie está internada no Hospital St.Joseph. Algo aterrorizante aconteceu na morada, e ela está sem lembranças do passado e sem a capacidade de falar. Enquanto é investigada pelo médico, com acusações que podem remeter a uma loucura hereditária, ela tenta através dos procedimentos reviver sua chegada A Ponte e tudo que acontecera até culminar em uma imensa tragédia. Purcell narra a beleza com a mesma proporção que explora o horror, sem poupar o leitor de narrações sangrentas e incômodas. Há muitas mortes descritas no livro, assim como a descrição de paisagens mágicas, da beleza das cores e a influência da natureza. Toda a sua literatura abriga um pesadelo, com a mansão e os Companheiros como personagens dispostos a se alimentar do sofrimento alheio.
Com toda a pesquisa histórica que envolveu seus trabalhos anteriores, como o estudo sobre as monarquias Hanoverian, Laura Purcell está bem à vontade para conduzir o leitor às épocas descritas, resgatando com lucidez a atmosfera e o horror gótico. O Silêncio da Casa Fria traz uma história de fantasmas como você nunca vira antes, um ótimo cartão de visita para os escritos de uma autora que deve ser mais observada.
Creio que eu tenha lido esse livro em 2021 e, desde lá, venho recomendando sempre a quem ainda não leu, devido à maneira como me impactou. Há muito não lia algo que me prendesse tanto, que me fizesse ansiar daquela forma pelas próximas páginas, os próximos acontecimentos. Embora já saibamos o destino de alguns personagens, ainda assim sofremos com eles durante o desenrolar dos eventos e mistérios até cada desfecho. A tensão e horror são crescentes em uma trama muito bem conduzida.
Como em todas as publicações da Darkside o projeto gráfico está incrível, simplesmente impecável. Apesar deterem replicado o mesmo projeto original no exterior, não vejo demérito nisso. “O Silêncio da Casa Fria” é leitura obrigatória para todos que adoram romances góticos, principalmente aqueles com casas mal assombradas. A prosa da Laura Purcell é ótima, nos deixando imersos na trama.
Contada por flashbacks, a narrativa é conduzida com maestria, se desenvolvendo de uma forma bem cadenciada e construindo um clima de horror sem apelação. Acho que um dos problemas de se contar uma história por flashbacks é que mais ou menos sabemos onde a coisa vai dar, contudo os bons escritores conseguem criar um clima de apreensão a partir disso, manipulando as nossas expectativas pelo momento derradeiro. Também gostei muito da construção da protagonista, Elsie, a antipatia inicial é dissipada com o crescimento da personagem.