Gêmeos - Mórbida Semelhança
Original:Dead Ringers
Ano:1988•País:Canadá Direção:David Cronenberg Roteiro:David Cronenberg, Norman Snider, Bari Wood, Jack Geasland Produção:Marc Boyman, David Cronenberg Elenco:Jeremy Irons, Geneviève Bujold, Heidi von Palleske, Barbara Gordon, Shirley Douglas, Stephen Lack, Denis Akiyama, Dee McCafferty, Jane Luk |
O cinema de Cronenberg é caracterizado pela repulsa: muito além do body horror comumente associado, ele explora a degradação de seus personagens, o mergulho em um vórtice de vícios e loucura, com toques do grotesco. Um estudo de sua filmografia permite passeios por um terror psicológico envolto em grafismo, na mescla entre a destruição da alma e consequentemente do corpo, com o apoio da ciência. Calafrios (Shivers, 1975) lidava com parasitas sexualmente transmissíveis, construindo um pesadelo claustrofóbico em um edifício, com seus moradores evidenciando medo e histeria; já em Enraivecida na Fúria do Sexo (Rabid, 1977), a reconstrução da face em um tratamento experimental traz vestígios do culto ao corpo, desconstrução da família, fanatismo religioso e político em um enredo com viés apocalíptico; o mesmo se nota em Filhos do Medo (The Brood, 1979), Scanners – Sua Mente pode Destruir (Scanners, 1981), Videodrome – Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983), A Hora da Zona Morta (Dead Zone, 1983), A Mosca (The Fly, 1986), Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991)… em cada produção a assinatura do cineasta é facilmente notada. Gêmeos – Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988) não foge à regra dessa fase mais intensa de seu portfólio.
Cronenberg se inspirou em duas fontes para desenvolver o filme: o livro “Twins“, de Bari Wood e Jack Geasland, e o estranho caso dos ginecologistas Stewart e Cyril Marcus. Ambos foram encontrados mortos no dia 17 de julho de 1975, com suspeita de doenças mentais e até pacto suicida. Artigos na época, a partir de exames toxicológicos, chegaram à conclusão que a causa teria sido overdose de barbitúricos. Depois de reescritas do roteiro, a recusa de Robert De Niro e William Hurt, Dead Ringers foi lançado em setembro de 1988, conquistando boas críticas e prêmios pela Associação de Críticos de Chicago, Los Angeles e Nova York, destacando a dupla atuação de Jeremy Irons, da coadjuvante Geneviève Bujold, além de edição, roteiro e, claro, direção.
Com uma abertura em artes que alternam entre utensílios de obstetra, imagens de fetos e gêmeos, o longa começa em 1954, em Toronto, Canadá, com os gêmeos Elliot (Nicholas Haley) e Beverly Mantle (Jonathan Haley) aos nove anos, conversando sobre sexo e fecundação. Depois de entenderem que os seres humanos fariam o ato de maneira diferente se vivessem embaixo d’água, ele propõe à jovem Raphaella (Marsha Moreau) que faça sexo com eles numa banheira para provar uma teoria. Na cena seguinte, brincando com um boneco com o corpo aberto, já criam uma cirurgia própria intitulada “intravular“. Em Cambridge, Massachusetts, em 1967, já com a interpretação de Jeremy Irons, o professor (Warren Davis) diz que o instrumento cirúrgico desenvolvido por eles somente servirá para cadáveres e nunca poderia ser usado em pessoas vivas. Porém, tempos depois são reconhecidos pela criação, recebendo um exemplar no utensílio em ouro “maçiço“. Quem recebe o prêmio é Elliot: “Você deveria estar lá, Bev“. E ele responde: “Eu estava“, na tendência de trocas que irá acompanhar a vida toda dos dois.
As ações saltam para o presente, em 1988, em Toronto, com Beverly descobrindo na paciente Claire Niveau (Geneviève Bujold) uma anomalia que ele chama de “trifurcada“, pelas três entradas de seu colo do útero, impedindo que tenha filhos. Os irmãos são bem-conceituados ginecologistas de uma clínica, com o confiante Elliot seduzindo mulheres para que o tímido Beverly possa se relacionar. Quando os planos de conquista envolvem Claire, Beverly se apaixona perdidamente por ela, despertando um conflito entre os dois, principalmente quando o outro irmão também se aproveita da fragilidade da garota. A intensidade da relação Beverly-Claire vai além de sentimentos e atração física, com o uso abusivo de medicamentos prescritos. Nem a revelação da farsa ou o afastamento temporário de Claire para participação em um filme impede a tensão de seus corpos.
Em um dos episódios mais grotescos da produção, com o delírio do triângulo apresentado, Elliot e Beverly estão grudados pelo abdômen, e Claire faz a “separação” com mordidas, ocasionando dor e prazer simultâneos, beneficiada pela fotografia azulada de Peter Suschitzky. Em outro momento, ao contratar o serviço de duas garotas de programa gêmeas, Elliot pede que cada uma o chame por um nome diferente, na própria confusão entre os irmãos pela inveja e admiração. A degradação psicológica se intensifica em visões de cirurgias quase como cultos religiosos, “mulheres mutantes“, tremedeiras e a influência no trabalho que arruína a carreira de ambos. Entre inversões de papéis e abstinência, é provável que a única condição de recuperar a sanidade seja finalmente uma separação dos irmãos em um processo cirúrgico em siameses.
Gêmeos – Mórbida Semelhança não é um filme fácil de assistir. Não por ter um final de difícil compreensão, mas pelas temáticas propostas, com Claire sendo a terceira parte do útero trifurcado ou até mesmo como um instrumento cirúrgico de separação de xifópagos. Cronenberg também se misturou aos irmãos na condução de sua derrocada psicológica, fazendo um trabalho excepcional de câmera nas sequências de dupla atuação de Irons. Tela dividida e uso de dublês auxiliaram no processo, mas dependeu também da criatividade do diretor na construção das cenas, justificando os méritos alcançados pela produção.
O bom trato do roteiro de Cronenberg e Norman Snider, nas simbologias apresentadas, serviram de inspiração para muitas produções, incluindo o livro que escrevi com o meu pai, “Lena – Paixão Sobrenatural“, em fase final de financiamento coletivo. Fã da obra, embora tenha começado a escrever duas décadas antes da realização do filme, há clara relação entre os gêmeos com características distintas e o body horror. O longa também inspirou a produção da série Gêmeas – Mórbida Semelhança, lançada em 2023, com a ótima performance de Rachel Weisz.
Considerado por muitos como um dos melhores trabalhos de David Cronenberg, Gêmeos – Mórbida Semelhança ainda se mostra interessante e intenso. Vale a pena rever a relação entre dois irmãos gêmeos tão diferentes, mas que ainda se mantêm presos um ao outro na composição de uma pessoa única com dupla personalidade.
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Caguei nas calças.
Assisti este filme na TV aberta na década de 90 o que mostra que até neste período a TV aberta ainda estava com boa amostra de filmes, o que inexiste hoje em dia.
Excelente atuação de Jeremy Irons, injustiça não ter sido indicado ao Oscar.