O Gato Preto (1934)

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O Gato Preto
Original:The Black Cat
Ano:1934•País:EUA
Direção:Edgar G. Ulmer
Roteiro:Edgar G. Ulmer, Peter Ruric, Tom Kilpatrick, Edgar Allan Poe
Produção:Carl Laemmle Jr.
Elenco:Boris Karloff, Bela Lugosi, David Manners, Julie Bishop, Harry Cording, Lucille Lund, Henry Armetta, Albert Conti

por Mari Dertoni

Em 1934, ano em que foi lançado O Gato Preto, filme dirigido por Edgar G. Ulmer e protagonizado por Boris Karloff e Bela Lugosi, muita coisa ainda não havia sido feita nem abordada no cinema. O longa é uma adaptação livre do conto homônimo do soturno escritor Edgar Allan Poe publicado em 1843 e vai se revelando mais macabro aos poucos, tornando-se uma obra que choca ao tratar assuntos pesados à época. O diretor aborda temas como satanismo, morte, incesto, tortura e guerra, em um contexto histórico mundial onde a Alemanha se via perdida após a derrota da Primeira Grande Guerra e Adolf Hitler instaurava o que se denominou o Terceiro Reich. Ulmer foi um realizador nascido na Áustria (país que em 1938 se converte em uma província do Terceiro Reich) e radicado nos Estados Unidos; pode-se considerar bastante provocador abordar temas tão sombrios em um momento histórico delicado como esse.

Em preto e branco, somos apresentados a Joan (Julie Bishop) e Peter Allison (David Manners), um romântico casal que viaja de trem em lua de mel na Hungria. O casal, porém, é interrompido em sua cabine particular quando lhes é anunciado que, devido a um erro interno, teriam que dividir o espaço com um estranho pelo resto da viagem. O estranho então se apresenta, é o misterioso Dr. Vitus Werdegast (Bela Lugosi), médico e veterano da Primeira Guerra que passou um tempo longe de sua família por ter sido prisioneiro durante 15 anos. Ele volta à Hungria para revisitar e acertar contas com um velho amigo, e tentar reencontrar sua esposa e filha.

Os três passageiros compartilham o mesmo pequeno espaço e não demora a surgir na tela momentos em que notamos a melancolia característica dos textos e personagens de Allan Poe, e, por mais que o longa não seja um retrato fiel do conto original, mantém o teor gótico-pessimista das obras do escritor. Por exemplo, quando Joan adormece recostada no ombro de seu marido, Werdegast passa sutilmente as mãos sob sua cabeça, quase tocando seus cabelos cacheados, como se não estivesse atento ao que fazia. Parecendo estar em um transe nostálgico, ele explica a Peter, com certa tristeza, que Joan lembrava muito sua esposa. A noite é de tempestade e da janela do trem o médico observa a chuva até chegarem à cidade de destino.

Um acidente com o ônibus que os conduzia na estrada chuvosa faz com que o trio permaneça junto. Com Joan desacordada e o motorista morto, a solução foi todos passarem a noite na casa de Hjalmar Poelzig (Boris Karloff), velho amigo de Werdegast, que mora nas proximidades. Os três, acompanhados do servo do doutor, chegam encharcados ao casarão de Poelzig.

O dono do luxuoso e moderno casarão é um homem com aspecto mórbido e sinistro, Poelzig é um renomado arquiteto, veterano ex-comandante de guerra, que construiu sua residência às custas de suas condutas obscuras durante seu comando. Um dos grandes méritos de O Gato Preto é trazer, pela primeira vez, dois ícones do cinema de horror contracenando fora da carapaça dos marcantes personagens que os consagraram. Bela Lugosi e Boris Karloff interpretaram, respectivamente, Conde Drácula e Dr. Frankenstein, duas lendas do cinema de gênero que dão início ao famoso ciclo de filmes de monstros da Universal, e que passaram suas carreiras dedicando-se a viver personagens sombrios e assustadores, como, no caso de Karloff em Frankenstein (1931), A Noiva de Frankenstein (1935) e A Múmia (1932); e de Lugosi em Drácula (1931), Zumbi Branco (1932) e A Ilha do Dr. Moreau (1932). Posteriormente os dois voltam a contracenar diversas vezes, mas já em decorrência do sucesso de suas figuras associadas aos personagens citados acima.

Mesmo em outro contexto, em O Gato Preto, é difícil não relacionar mentalmente Bela Lugosi ao Conde Drácula quando Werdegast profere frases em tom bastante sério como: “Durante quinze anos eu apodreci na escuridão”, ao contar a Poelzig sobre os anos que teve que aguentar como prisioneiro de guerra longe de sua família. Pode não ter sido intenção do diretor, mas trabalhar com figuras tão icônicas, causa esse efeito. O mesmo acontece com Boris Karloff, em diversos takes onde é contemplado com efeitos de iluminação que marcam seu rosto filmado de baixo pra cima, e Poelzig mantém um penteado e postura bastante parecida com a de Victor Frankenstein.

Ulmer explora lindamente as projeções de sombras sólidas em diversos quadros no longa, formando linhas e formas geométricas, e, através do uso de alto contraste e efeitos de contraluz que evidenciam as silhuetas, nos remete às nuances dramáticas do expressionismo alemão. Movimento artístico vanguardista que nasceu em 1910 na Alemanha, trazendo temáticas pessimistas, distorções da realidade, hiperestilização das caracterizações dos atores e cenários. Vemos isso no visual dos protagonistas, nas sinuosas escadarias e na arquitetura moderna em art-deco e cheia de formas lineares e obtusas da casa do arquiteto.

Em O Gato Preto, vemos também o uso de fades de transição das imagens e raccords de movimento, artifícios que dão bastante fluidez na continuidade do filme, além de uma utilização delicada dos reflexos, que brincam com efeitos de sobreposição e duplicidade, reforçando a contemplação do olhar e a expressividade dos personagens. Um exemplo disso é quando Poelzig leva Werdegast à uma sala secreta, onde ele armazena corpos de mulheres embalsamadas, e lá está o de sua falecida esposa. Os dois olham com enorme admiração aquela figura feminina delicada e perpétua, dentro de uma redoma de vidro, onde eles têm seus rostos e expressões refletidos, enquanto observamos também o rosto da mulher cadáver.

Nos andares e nas salas secretas da casa de Poelzig, é onde vemos a face mais obscura do anfitrião, que se despe da moral ao revelar que lá, além do depósito dos corpos que armazena como uma coleção de obras de arte, há também um espaço com altar para rituais de adoração ao Diabo. Fato que acaba sendo transmitido de forma um pouco apressada no filme, mostrando que o roteiro apresenta alguns desleixos, pincelando ideias e acontecimentos que não conseguem ser solidamente trabalhados. No andar de baixo é ainda onde Werdegast encontra pela segunda vez com um gato preto, animal que lhe causa uma terrível fobia e inexplicável repulsa, que o deixa atordoado e vulnerável. O gato aparece como um símbolo sombrio e místico da representação do mal, muito característico das obras de Poe.

Werdegast, ao descobrir que o arquiteto, além de tomar sua esposa para si, criou sua filha pequena e veio depois a casar-se com ela, fica enfurecido. O filme levanta em seus momentos finais questões mais assombrosas, como a sugestão ao incesto, ao revelar que Karen, filha do médico, é também esposa do homem que a criou. Diante de tantas traições imperdoáveis, o médico vira sádico e usa sua expertise para acabar com Poelzig, acorrentando-o com o intuito de esfolá-lo vivo! São ideias bastante violentas, tratadas com certa subjetividade pela câmera, através de um horror de bastidor. Vemos as sombras, ouvimos os gritos e gemidos, sentimos a agonia dos personagens.

Ulmer cria uma obra sombria, com temáticas tenebrosas e com a ousadia de serem abordadas na década de seu lançamento. Trazendo os terrores da Grande Guerra para dentro de sua história e focando em uma abordagem nada sutil acerca dos traumas desse período, através de dois personagens assombrados pelo que viveram. O diretor faz uma adaptação livre do conto de Poe de forma bastante corajosa, dando palco às monstruosidades de Poelzig, e mantém o fio do romance através do casal inseparável que se vê perdido nessa viagem infernal. Por fim, ninguém sai ileso da narrativa amaldiçoada de Ulmer/Poe.

SOBRE A AUTORA:
MARI DERTONI é bacharel em jornalismo, crítica e pesquisadora de cinema. Estudou na Academia Internacional de Cinema no Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo.
Publica suas críticas e textos sobre cinema nos sites Coletivo Crítico e Críticos.com, também no Letterboxd/Twitter/Instagram no @maridertoni.

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