Contos Fantásticos (2022)

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Contos Fantásticos
Original:Racconti Fantastici
Ano:2022•País:Itália
Autor:Iginio Ugo Tarchetti•Editora: Ex Machina e Sebo Clepsidra

Em meados da década de 1860 começou a se desenvolver um movimento na Itália chamado de Scapigliatura. Não é exatamente uma escola literária, é mais uma junção de artistas com ideias semelhantes, autores que repudiavam as convenções sociais burguesas e literárias, uma vontade de se rebelar contra o tradicionalismo, contra o belo e o romantismo italiano e a favor do romantismo estrangeiro. Autores angustiados, insatisfeitos, amargurados, revoltados. Cresceu-se entre esse grupo italiano – os scapigliati – o interesse por elementos da tradição gótica e por autores como Baudelaire e Edgar Allan Poe, usando do mórbido e do fantástico, da ironia e do grotesco, para expressarem em sua arte todo seu descontentamento, inconformidade e aversão aos valores da sociedade moderna.

A revista Cronaca Grigia, fundada por Cletto Arrighi, foi a primeira manifestação da Scapigliatura (cujo termo também foi proposto por ele, sendo uma tradução livre para o termo francês bohème – boêmio) e, participando do primeiro grupo deste movimento, está Iginio Ugo Tarchetti que é, junto com Emilio Praga, Carlo Dossi, Arrigo e Camillo Boito e, é claro, Arrighi, um dos expoentes da Scapigliatura. A escrita de Tarchetti bebe da fonte da literatura gótica e fantástica, com histórias permeadas de mistério, melancolia, tensão e um toque de humor ácido. O autor também esteve envolvido em uma polêmica: traduzindo um livro de Mary Shelley, O Mortal Imortal, para o italiano, Tarchetti jamais deu os créditos de criação à autora e modificou seu título e, com isso, acabou assumindo a autoria da obra na Itália.

As editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra se juntam para trazer aos seus leitores um pouco sobre a Scapigliatura e a obra de Ugo Tarchetti para o Brasil com a antologia Contos Fantásticos, contando com um excelente trabalho de tradução de Théo Borba Moosburger. O livro possui cinco contos do autor, poesias scapigliata de quatro autores e ainda um belíssimo trabalho de pesquisa nos paratextos escritos por Andreia Guerrini, Karine Simoni e Julia Lobão.

Em seu primeiro conto, Os Fatais, Tarchetti fala a respeito de uma criatura misteriosa e fatal. Aparentemente, todos que entram em contato com tal figura sofrem algum tipo de mal. Durante o carnaval, um rapaz perdeu o braço; durante uma ópera, uma moça teve um mal súbito e desmaiou. O elo em comum? A tal criatura estava presente em ambos os eventos. Nosso narrador-protagonista pega para si a missão de parar tal criatura antes que a mesma se case com Silvia, a nova vítima, que está cada dia mais fraca e cadavérica, como se algo sugasse suas energias vitais.  A história exibe vários elementos do fantástico, como por exemplo a misteriosa criatura que assume uma identidade e rouba a vida de suas vítimas, como um ser sobrenatural que ninguém desconfia. O final é típico de um conto de Poe, com atmosfera sombria e o mistério pairando no ar. Nunca saberemos o que de fato era a criatura, fica apenas para a imaginação.

Em As Lendas do Castelo Negro, enquanto ouve um velho tio contar as aventuras de suas viagens em volta da lareira, um rapaz e sua família são surpreendidos pelo barulho de algo lançado por cima de seu muro. Ao checarem, encontram um embrulho claramente feito muito tempo atrás e, dentro dele, dois velhos volumes de manuscritos são encontrados. O tio do rapaz treme visivelmente ao contemplar o conteúdo, afirmando que são memórias das origens da família. Após esse acontecimento aparentemente inofensivo, o rapaz começa a ter sonhos estranhos. Sonhos onde está mais velho e uma moça aparece para falar sobre seu futuro, inclusive data e local de sua morte. E ali, nas paisagens de seus devaneios, encontra-se um imponente castelo negro. Tem algo de aterrorizante em saber seu futuro e, em especial, o dia e local da sua morte, especialmente pelo modo como é contado por Tarchetti. A presença do gótico também é forte nessa história. Não é um conto que vai te fazer perder o sono, mas tem seu mérito.

Em seguida, temos o conto mais sensacional do livro. A Letra U (Manuscrito de um Louco) é exatamente sobre isso, a letra U. O autor conseguiu escrever sete páginas discorrendo sobre como a letra U é maldita, terrível, abominável, assustadora. Como evitou a letra sua vida inteira, apesar de seu nome possuir uma dessas vogais horríveis, como se apaixonou por mulheres e se afastou rapidamente ao descobrir que seus nomes começavam com a letra U, como sua obsessão por isso moldou sua forma de viver, como um medo surreal se transformou em pura insanidade. Se criar um conto mostrando o quanto uma vogal pode ser o pior pesadelo de alguém, transformando algo tão simples e corriqueiro em algo maligno e sobrenatural ao ponto de literalmente levar o personagem à loucura, não for um atestado de genialidade, eu sinceramente não sei o que poderia ser. Talvez a inspiração tenha vindo de seu apelido Ugo, quem sabe.

Um Osso de Morto é um conto que caminha entre a linha tênue do bizarro e do engraçado, do terror e do terrir, encontrando um certo tipo de equilíbrio. Nosso narrador era amigo de Federico, um professor de patologia e clínica que morreu recentemente. Antes de morrer, o professor pediu ao amigo que lecionasse anatomia em seu lugar, e deu-lhe alguns ossos humanos como lembrança. Mesmo parando de lecionar e de estudar desenho, ainda assim guardou um dos ossos que Federico lhe dera: uma rótula de joelho. Durante uma sessão espírita, onde decide tentar falar com o falecido amigo, acaba entrando em contato com Pietro Mariani, dono da rótula que está em sua posse. Mariani avisa que irá até sua casa buscar seu osso, e nosso amedrontado narrador sugere enviar para o além de algum modo. Claro que o fantasma ignorou sua sugestão e apareceu naquela noite. É um conto divertido que tem como assunto principal o ceticismo e cientificismo. O narrador, mesmo tentando entrar em contato com seu amigo falecido para saber mais sobre o além vida, não acredita que de fato um fantasma irá até sua casa, afinal é algo fora de seu controle – diferente da sessão espírita, que ele escolheu participar e chamar Federico, a visita de Pietro Mariani à sua casa não poderia ser evitada. O famoso questionamento da vida após a morte é obviamente forte aqui, com ares mais cômicos combinados ao macabro.

O último conto, Um Espírito numa Framboeseira, fala de um barão que, após sair para caçar, descansa embaixo de uma árvore. Sentado ali, vê algumas framboesas e decide comê-las, começando a passar mal quase imediatamente. Seu corpo e ações não pareciam mais seus, um peso na cabeça, vontades diferentes… como se outra pessoa estivesse assumindo o comando. De repente, outras memórias que não as suas aparecem à mente e até mesmo uma outra personalidade. Assim que retorna ao castelo, suas feições também parecem mudadas, já que um dos guardas se assusta ao reconhecer ali Clara, a mulher que ele assassinou. A possessão que acontece aqui é de um modo curioso, criativo e nada convencional, o que conversa com a ideologia scapigliata de aversão ao tradicional. Clara, como humilde camponesa, foi assassinada e a realeza – o barão – sequer teve conhecimento disso até ser possuído, e aqui vemos a manifestação do repudio à burguesia retratado em forma de um conto fantástico.

Recheado de elementos fantásticos e góticos, os contos de Iginio Ugo Tarchetti trazem não apenas ares sombrios e mistério, como também algumas narrativas com toques cômicos e uma ambiguidade muito presente. Aquilo aconteceu ou foi apenas um delírio? O leitor quem decide, o narrador apenas conta os fatos como se lembra ou como lhe foram contados. Nota-se que a scapigliatura foi muito influenciada por autores estrangeiros nesses contos, com a presença forte do macabro em diversos momentos, especialmente no conto Os Fatais, além de alusões que remetem a algumas histórias de Edgar Allan Poe. Também é possível observar a angústia, o sombrio, o descontentamento na parte de Poesia Scapigliata presente na obra, com poesias de vários autores italianos da época.

Contos Fantásticos é uma leitura recomendada para amantes de narrativas sombrias e misteriosas e para todos que querem conhecer mais sobre a Scapigliatura e suas características. Apreciadores das obras de Poe certamente vão gostar de conhecer mais sobre esse movimento italiano que foi influenciado pelo seu trabalho (dentre outros escritores), além de poder ter a oportunidade de ler e conhecer alguns contos de um importante nome para o período, Iginio Ugo Tarchetti. Os textos complementares e poesias de outros autores italianos enriquecem ainda mais a leitura, fazendo com que seja um exemplar único publicado em território nacional.

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Louise Minski

Um experimento de Schrödinger entediado.

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