Em 1932, Tod Browning (diretor de Drácula, 1931) concebeu um dos filmes mais polêmicos da História do Cinema. Freaks – lançado por aqui como Monstros – chamou a atenção mais do que pelo seu contexto envolvendo a Grande Depressão e conflitos de classe, mas pelo fato do cineasta utilizar como parte do elenco atores com deficiência física ou que chamavam a atenção por sua condição. Foi banido em alguns cinemas, considerado grotesco durante anos, até que revisões e relançamentos nos anos 60 destacaram seus méritos, transformando a produção em uma obra cult e necessária. A quarta temporada de American Horror Story, intitulada Freak Show, fez questão de homenagear o longa como inspiração assumida, e foi um pouco além em seu repertório de esquisitices.
Muitas das críticas a Murder House, Asylum e Coven destacaram personagens estranhos. É difícil uma resenha dessa série não vir acompanhada de adjetivos como “bizarro“, “incomum“, “esquisito” ou “peculiar” na definição da galeria de personagens e situações inusitadas. Assim, uma tendência natural da criação de Ryan Murphy e Brad Falchuk seria realizar uma temporada que fosse realmente envolta nessas características, soubesse criar seus próprios “freaks“, e também utilizasse pessoas com suas próprias peculiaridades – não consigo enxergar como deficiência ou deformidade -, comumente vistas como diferentes. É o mais interessante é que são personagens curiosos, ingênuos, muito bem construídos através de suas ótimas atuações. O espectador realmente adota a trupe de Elsa Mars (Jessica Lange) durante seus trezes episódios, importando-se com seu destino. O problema foi novamente a narrativa principal.
O episódio inicial foi exibido na TV no dia 8 de outubro de 2014. Dirigido pelo próprio Ryan Murphy, “Monstros Entre Nós” mostra Elsa tentando recrutar para seu circo as gêmeas siamesas Bette e Dot Tattler (Sarah Paulson em atuação dupla e espetacular) no hospital, depois que a mãe delas fora encontrada morta pelo leiteiro. Nesse primeiro momento, já se sabe que a temporada será ambientada em 1952, em Júpiter, Flórida, tendo como principal cenário o local do Circo de Curiosidades de Elsa, com suas tendas, trailers e um palco principal para as apresentações. Estando com dificuldade financeira, em vias de fechar ou buscar outra localidade, Elsa acredita que as gêmeas talvez ajudem a trazer público, desde que não se tornem a atração principal e ofusquem seu talento artístico.
Além delas e de Elsa, o circo tem em sua trupe Jimmy “o menino lagosta” Darling (Evan Peters), que tem sindactilia; sua mãe, a mulher barbada Ethel (Kathy Bates); a menor mulher do mundo, a graciosa Ma Petite (Jyoti Amge); a mais forte, Amazon Eve (Erika Ervin); Paul, o selo ilustrado (Mat Fraser); Pepper (Naomi Grossman, que fez o mesmo papel em Asylum), seu marido, Salty (Christopher Neiman) e o pequeno Meep (Ben Woolf); além de outros, como os que entram para o grupo nos episódios seguintes: o homem forte Dell Toledo (Michael Chiklis) e sua companheira de três seios, Desiree Dupree (Angela Bassett), e os farsantes, Maggie Esmerelda (Emma Roberts) e Stanley (Denis O’Hare), o senhor “Hollywood“.
Destacam-se também já nos episódios iniciais o terrível palhaço assassino Twisty (John Carroll Lynch), o riquinho e azedo Dandy Mott (Finn Wittrock) e sua mãe Gloria (Frances Conroy). O palhaço, de aparência aterradora com uma máscara com uma boca enorme, mata e sequestra algumas pessoas, mantendo-as presas em um trailer velho, sendo visto por Dandy, que desperta seu lado assassino posteriormente. Enquanto no circo, Elsa fica enciumada com as gêmeas e tenta vendê-las para os Mott, e precisa apresentar novas atrações, como o círculo giratório para ela atirar facas. Dell é chantageado por Stanley, que o obriga a matar pessoas do circo e vender seus corpos para um museu de bizarrices; e Jimmy precisa lidar com o seu passado, seu interesse por Maggie e a afeição que sente pelos demais, principalmente quando somem, morrem ou são ameaçados.
Como é de costume na série, alguns flashbacks ajudam a construir a profundidade de seus personagens, seja o palhaço Twisty ou até a própria Elsa, que perdeu as pernas em 1932 – a escolha do ano não é por acaso. E há episódios que trazem personagens de momento, como Edward Mordrake (Wes Bentley), que possui um rosto com personalidade na parte de trás de sua cabeça – como a criatura de Maligno – e se transformou numa entidade que amaldiçoa apresentações no Halloween. Ele aparece em dois episódios, conversa com o elenco até encontrar aquele que tem os piores pecados e fará parte de seu circo de assombrações, acompanhando-o pela eternidade – único elemento sobrenatural da temporada.
Se em Coven quase ninguém realmente morre – e quando acontecia, a personagem era trazida de volta -, em Freak Show vários são vítimas até mesmo em um massacre nos momentos finais, voltando apenas como lembranças, fantasmas que representam o peso na consciência ou em flashbacks. Algumas dessas perdas são verdadeiramente sentidas, como a de Meep no episódio inicial e outra, que poderá emocionar até os mais resistentes.
A temporada, que teve 76 indicações a prêmios e levou 21, não foi tão envolvente quanto as três primeiras. A primeira metade, com o palhaço assassino e Mordrake, foi bem mais interessante do que acompanhar as maldades do mimado Dandy. Aliás, chega a ser estranha a transformação dele em assassino em um processo que envolveu resistência do personagem, para depois o próprio roteiro dizer que ele matava animais e fez um garotinho sumir na infância. Mais irritante da temporada, teria sido muito melhor se mantivessem Twisty como a única ameaça insana, principalmente pelo modo como ele foi construído, como um monstro. Também soou forçado o destino traçado para Maggie, e o esquecimento da trupe pelas ações do Homem Forte, que antes mesmo da revelação de seu crime, já havia feito bobagens no circo.
Por outro lado, a ideia de conectar Freak Show com Asylum, na participação de Lily Rabe como a Irmã Mary Eunice McKee, para receber Pepper foi bem legal. É algo que as temporadas seguintes de American Horror Story começaram a fazer, valorizando antigos personagens e ambientações. Isso dá a série como parte de um universo aterrorizante único. E vale menção à merecida homenagem ao clássico Halloween, de John Carpenter, quando Dandy coloca a máscara de palhaço e a câmera passa a “enxergar” pelo olhos dela. E as aparições de Twisty nas ruas, observando de longe, também lembram um Michael Myers à espreita, aguardando a oportunidade de infernizar Laurie Strode.
Se a segunda temporada pertenceu a Lange e a terceira a Bates, esta quarta é toda de Sarah Paulson. Com efeitos especiais incríveis e ótimas movimentações de câmera, Bette e Dot são duas personagens bem distintas, graças à atuação de Paulson. Enquanto Dott é mais fria e inteligente, Bette é mais sentimental e alegre – e o espectador fica encantado pelas duas, preocupando-se com seu destino, seja o desejo de se separar ou fazer parte do museu. O roteiro final até “força” para Lange se destacar, colocando a atriz para cantar em diversos momentos, explorando sua imponência de palco: o episódio final dedica sua última meia-hora para explorar toda a sua veia artística. Ela é realmente uma atriz fantástica, mas Paulson a ofuscou como temia Elsa.
Freak Show tem como mérito apresentar um espetáculo ousado de esquisitices. E é incrível pensar que, apesar de seus personagens peculiares, as verdadeiras aberrações são os que não possuem diferenças físicas. Nesse ponto, Ryan Murphy foi muito bem e traria orgulho para os envolvidos naquele circo de 1932.