Dissecando o Medo #7: Quem é Samara Morgan?

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Ela nunca dorme.“, assim o garoto de olhar esbugalhado Aidan (David Dorfman) definiu a menina da fita amaldiçoada. Versão americana da terrível Sadako, que foi perdendo força nas continuações ruins, Samara Morgan devolveu ao cinema americano o prestígio de uma refilmagem bem sucedida. O longa de 2002, de Gore Verbinski, teve o mérito de não apenas se inspirar na versão nipônica como também uma identidade própria. Ainda que muitos consideram Ringu muito melhor do que The Ring, é preciso enaltecer o enredo de Ehren Kruger, baseado no romance de Kôji Suzuki, pelas diferenças apresentadas, fortalecido por um elenco de renome, com a liderança de uma convincente Naomi Watts e o martírio de um melancólico Brian Cox.

O Chamado foi muito bem sucedido, tanto na arrecadação três vezes superior ao seu custo, quanto na boa receptividade de público e crítica. Os calafrios proporcionados pelo longa estimulou o desenvolvimento de uma continuação em 2005, desta vez comandado pelo criador, Hideo Nakata, e com o retorno de quase todo o elenco original, à exceção da atriz que interpretou a vilâ, Daveigh Chase, que foi substituída por Kelly Stables. Sem a inspiração da franquia, partindo para um caminho próprio, O Chamado 2 conseguiu um bom rendimento no box office, mas foi considerado irregular pelos espectadores, seja pela falta de bons sustos ou por um conceito melodramático artificial.

Antes do lançamento do segundo filme, para atiçar os fãs, foi realizado um curta-metragem intitulado Círculos (Rings, 2005), dirigido por Jonathan Liebesman, servindo como um prólogo para o segundo filme. Nele, a partir da solução para a maldição de Samara, apresentada por Rachel, um grupo de jovens decide “brincar de ser um condenado“: um assiste ao vídeo amaldiçoado e filma sua reação aos sintomas até quando aguentar, passando a fita para outro e assim por diante. Assim que Jake (Ryan Merriman) é contaminado, ele se diverte com o que presencia, mas não consegue convencer ninguém a assistir ao filme. Resta a esperança na ingênua Emily (Emily VanCamp), uma colega da escola. Um pequeno tira-gosto, mas que teve uma boa aceitação, tanto que a produção passou a fazer parte do DVD do segundo filme, lançado pela Dreamworks.

Depois de alguns anúncios de que haveria um novo remake, finalmente uma continuação oficial saiu do papel. Aproveitando a estreia do aguardado O Chamado 3, de F. Javier Gutiérrez, decidimos analisar a trajetória dessa assombração conhecida como Samara Morgan, na nova edição da série Dissecando o Medo. Só podia ser a sétima, né? Se ao término da leitura, tocar o telefone…não o atenda!

Ingenuidade que Assusta

Um rostinho delicado por trás daquela pequena de apenas 8 anos de idade. Longos cabelos negros, olhos castanhos, e um vestido branco, devido a sua estadia no Hospital Psiquiátrico Eola County, ela é uma garotinha tímida, de fala contida, e a expressão calma e agradável. Esse anjo de pele alva posteriormente se transformaria numa versão agressiva, com a pele acinzentada, cabelos úmidos e um rosto de expressão fria, maléfica, deformada. Nada mais assustador que seu olhar odioso, fixo, mortal. Basta encará-la uma única vez para a testemunha congelar a face, estampando em seu último suspiro um medo absoluto, de quebrar o queixo.

Por trás desse cenário de horror, esconde-se uma menina que apenas queria chamar a atenção. Quando sua mãe Evelyn estava grávida de oito meses, buscou ajuda em um hospital comandado por freiras, onde deu à luz a Samara, uma bebê que não chorava. Nascida em 1970, não há informações sobre o pai, mas imagina-se que a garota herdou dele suas habilidades. Evelyn dizia que a própria filha relatava a presença de um demônio em seu corpo, sugerindo à mãe um afogamento em um lago. Durante o ato, ela foi salva pelas freiras, ocasionando a prisão de Evelyn em um hospício, e a adoção da inocente menina.

Foi adotada pela reclusa família Morgan, Richard (Brian Cox) e Anna (Shannon Cochran), sendo levada para morar em um rancho na Ilha Moesko. Quando cresceu e seus poderes começaram a se desenvolver – como a projeção de imagens mentais -, a pequena foi levada ao Hospital Psiquiátrico de Eola County para um acompanhamento médico. Na entrevista a pequena disse que seu pai adotivo pretendia deixá-la definitivamente no local, já evidenciando seu sentimento de rejeição. Com a morte do doutor Scott, não houve alternativa para os familiares que não fosse levá-la de volta ao rancho, mesmo que Anna já deixasse claro sua depressão e pensamentos suicidas.

Para evitar que machuque qualquer outra pessoa, Richard decidiu mantê-la em um celeiro, no segundo andar, com apenas uma escada para acesso. Ela só tinha a companhia da TV, sempre ligada, fora de sintonia. Como os cavalos faziam constantemente barulho e a impediam de dormir, ela fez com que eles começassem a ficar loucos e se atirassem do penhasco para se afogar no mar. Ao todo, 27 cavalos morreram, conforme foi noticiado nos jornais como algo extraordinário e consequência de alguma doença. Anna foi para o hospital, e o rancho ficou sob quarentena por cinco semanas até que Richard concluiu que a atitude era uma reação da pequena Samara.

O Chamado 2 (2005)

Não suportando o fardo, Anna decidiu por um fim ao demônio. Ela levou a pequena para passear pelo campo. Enquanto ela admirava uma grandiosa árvore, Anna a sufocou com um saco plástico e, pedindo desculpas, atirou seu corpo no interior de um poço. Samara não morreu sufocada, nem pela queda. Ficou sete dias viva no fundo de um poço escuro, com o corpo molhado e frio. Suas tentativas de escalar as paredes só aumentaram sua dor, seja nos machucados ocasionados pelas quedas ou em uma unha que se partiu e o dedo que se esfolou.

Com seus poderes, ela desenvolveu uma fita com tudo o que testemunhou na agonia, deixada na cabana 12, embaixo de uma TV próxima a um aparelho de videocassete. Com o ódio que a acompanhou nesse período de dor e solidão, Samara se transformou em um onryō, um espírito de vingança japonês. Aquele que testemunhasse seu sofrimento receberia a visita da garota, sete dias depois, em um processo lento e doloroso, culminando na expressão de horror de uma face distorcida.

Sete dias depois…

Antes de sair do poço em um movimento em que perna e braços lhe dão um aspecto aracnídeo, Samara já tinha deixado evidente seus poderes. Um deles é o chamado Nensha (“pensografia“), associada à projeção termográfica e fotografia psiquíca. A partir de uma imagem importante, ela consegue gravá-la ou projetá-la queimando em um papel ou parede, como fez com uma árvore no celeiro e a própria fita mortal. Sua habilidade também possibilita que ela conduza imagens à mente das pessoas que viram sua fita. Às vezes, a falta de controle sobre o seu dom pode levar à loucura e ao desejo de suicídio. Foi o que ela fez com os cavalos que o pai adotivo parecia amar mais do que a ela.

Contudo, sua obra-prima foi, sem dúvida, a fita. Ele conseguiu transferir para a película suas principais lembranças, de maneira desconexa, refletindo cada episódio marcante. Ao conferir a fita maligna, o incauto recebe um telefonema com a voz da pequena anunciando que ele terá apenas sete dias de vida.

Com pouco menos de um minuto e meio, o vídeo começa mostrando um círculo no centro da tela – a representação da visão que Samara tinha de dentro do poço fechado; a imagem de um TV fora do ar e água; uma cadeira – onde ela era interrogada no hospital; o movimento de um bando de cavalos (rumo ao suicídio); sua mãe Anna penteando os cabelos enquanto se olha no espelho (uma leve distorção da imagem lhe dá um aspecto assustador); o olhar da pequena no espelho, testemunhado pela mãe; um prego com sangue na ponta (onde ela esfolará o dedo ao tentar sair do poço); o olhar de Richard do segundo andar; um penhasco, uma árvore e o poço – uma mosca aparece na tela; algo que sai de uma boca escancarada; cabelos; poço se fechando; árvore em chamas; dedo no prego; muitos vermes; uma cadeira se distancia de uma mesa, onde é possível ver um copo com água – e uma centopeia surge por baixo; uma cabra com a pata machucada; o olhar do cavalo; dedos se movimentando em uma caixa; novamente a árvore em chamas; mais cabelos; mais uma vez a mãe no espelho, ajeitando os cabelos e olhando para trás; ninguém na janela do rancho; a cadeira dançando de ponta cabeça; uma escada encostada na parede; cavalos mortos na praia; o suicídio de Anna no abismo; a queda da escada; o fechamento do poço; uma imagem do poço do lado externo; TV fora de sintonia.

Seus poderes parecem fortalecidos pelas imagens, conseguindo até mesmo queimar a mão da pessoa como fez com Rachel (Naomi Watts) e Aidan. A pessoa amaldiçoada começa a testemunhar a loucura de cavalos e outros animais, pesadelos incompreensíveis, sangrento no nariz, vomita o cabelo de Samara (ou a centopeia, no caso de Jake) e consegue capturar a mosca que aparece na tela da TV. Embora sejam lentas formas de tortura, fica evidente que cada fenômeno representa uma maneira que Samara encontrou para chamar a atenção.

Uma criança rejeitada pela família, ela aparenta uma assombração típica do gênero, que apenas deseja ter sua história conhecida e ter seu corpo encontrado no fundo do poço para um enterro digno. Mas, não é isso. Ela sente falta do amor materno como qualquer pequena desejaria e enxerga em Rachel a mãe que nunca teve. Assim, Samara encontra um único meio possível de se aproximar da pessoa querida: possuir Aidan. Com a mudança de comportamento gradual do garoto, a única solução possível seria confrontá-la em seu próprio universo, talvez impedindo-a de sair do poço que foi sua morada por tanto tempo.

Curiosidades de Samara

– As duas atrizes que interpretaram a personagem nos dois primeiros filmes são mais conhecidas pelas vozes de personagens que dublam. Daveigh Chase fez Lilo em Lilo & Stitch, da Disney; Kelly Stables deu voz à Will Vandom em W.I.T.C.H., embora também tenham participações pequenas em produções como Quero Matar Meu Chefe 2, 2014. Já a mais nova Samara, Bonnie Morgan, tem uma carreira mais consistente como dublê, tendo atuado em O Último Caçador de Bruxas (2015), Filha do Mal (2012) e A Hora do Espanto (2011).

– O especialista em efeitos de maquiagem, Rick Baker, trabalhou na concepção das duas primeiras versões de Samara. Só não está por trás da Samara versão 2017.

– A aparência de Samara remete a Alma Wade do jogo F.E.A.R. Ambas fazem uso de poderes psíquicos para afetar suas vítimas

– O nome “Samara” significa “Protegida por Deus“; enquanto “Morgan“, em alemão, quer dizer “moradora do mar“.

– Para filmar a cena em que Samara sai da TV para matar Noah Clay, a atriz Daveigh Chase foi filmada andando de costas, o que deu aquela impressão estranha com a câmera inversa.

– Cuidada por três artistas, a maquiagem de Samara no segundo filme demorava em torno de cinco horas para ficar completa.

– a árvore de folhas vermelhas que aparece no primeiro filme é um bordô japonês. Seu nome é “samara“.

– O nome da garota é uma referência a uma história sobre morte, escrita por W. Somerset Maugham. Intitulada “Appointment in Samarra“, a história fala sobre um homem que encontra a Morte em um mercado e tenta fugir dela correndo para Samarra.

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Marcelo Milici

Professor e crítico de cinema há vinte anos, fundou o site Boca do Inferno, uma das principais referências do gênero fantástico no Brasil. Foi colunista do site Omelete, articulista da revista Amazing e jurado dos festivais Cinefantasy, Espantomania, SP Terror e do sarau da Casa das Rosas. Possui publicações em diversas antologias como “Terra Morta”, Arquivos do Mal”, “Galáxias Ocultas”, “A Hora Morta” e “Insanidade”, além de composições poéticas no livro “A Sociedade dos Poetas Vivos”. É um dos autores da enciclopédia “Medo de Palhaço”, lançado pela editora Évora.

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