Sangue de Pantera (1942)
![]() ![]() Sangue de Pantera
Original:Cat People
Ano:1942•País:EUA Direção:Jacques Tourneur Roteiro:DeWitt Bodeen Produção:Val Lewton Elenco:Simone Simon, Kent Smith, Tom Conway, Jane Randolph, Jack Holt, Henrietta Burnside, Alec Craig, Eddie Dew, Dot Farley, Mary Halsey, Alan Napier, Murdock MacQuarrie |
“… há uma necessidade psicológica de lançar mal sobre o mundo. E todos nós abrigamos um desejo pela morte. Você teme a pantera, mas ela lhe atrai muito mais.”
Irena Dubrovna é uma jovem estilista de origem sérvia que está aterrorizada pela possibilidade de que uma suposta maldição, herdada de seus antepassados, possa ser real e não apenas um mito.
Ainda criança, ouvia os antigos contarem sobre o tempo em que seu povo foi escravizado por estrangeiros. Os piores infortúnios recaíram sobre gente simples que, para sobreviver, passou a adorar entidades malignas; muitos ressurgiram como bruxas e escaparam para as montanhas. Os descendentes deste povo estariam condenados a se transformar involuntariamente em um animal selvagem, sempre que acometidos pelas emoções humanas mais primitivas, como o desejo, a raiva ou a tristeza.
Sem saber como agir, ela decide que é mais seguro afastar-se do cético Oliver Reed, o homem que conheceu em uma de suas visitas ao zoológico e que hoje é seu marido. Ela tenta avisá-lo dos riscos, mas ele insiste que seu temor não passa de um delírio e a convence a visitar o respeitado psiquiatra Dr. Louis Judd. Porém, o perigo é cada vez mais concreto, e Irena lentamente se torna uma ameaça para todos que a cercam.
Sangue de Pantera pode ser considerado um bom exemplo do subgênero horror psicológico, tão em evidência no momento atual. O longa explora com enorme competência a ambiguidade, a incerteza e a sugestão; o medo e o suspense são instaurados de maneira sutil por um enredo que furta-se de mostrar – deixando o trabalho da interpretação por conta da imaginação do espectador. Somado a isso, o equilíbrio entre a qualidade técnica e a inventividade, que contrastava com a maioria das produções extravagantes do gênero lançadas na época, garantiu que o filme alcançasse o merecido e incontestável status de cult.
Entretanto, é curioso que parte deste apuramento técnico e criatividade seja decorrente das necessidades relacionadas às limitações do orçamento. Contextualizando a produção, Sangue de Pantera foi realizado em 1942 pela RKO Pictures, mesmo estúdio responsável por sucessos como King Kong (1933), mas que enfrentava dificuldades financeiras após o alto investimento em Cidadão Kane (1941) e Soberba (1942) – obras de Orson Welles, hoje consideradas marcos importantíssimos do cinema, porém que não foram bem recebidas pelo público quando lançadas. Neste período complicado, a RKO, inspirada no sucesso de bilheteria dos conhecidos Monstros da Universal (os populares Frankensteins, Dráculas e Lobisomens), buscou o Val Lewton (produtor nascido na região da Ucrânia e residente em solo americano) e encomendou uma série de filmes de horror de baixo orçamento. Conta a história que cada longa-metragem deveria custar no máximo US$ 150 mil, enquanto Lewton receberia apenas US$ 250 por semana. No entanto, o cineasta não se ateve a simplesmente replicar o modelo da Universal e optou por investir em tramas menos explícitas, mais sombrias e obscuras.
No final, o fruto desta iniciativa foi uma série de longas-metragens que alcançaram o reconhecimento nas bilheterias e evitaram a falência da RKO Radio Pictures. Foram rodados, além de Sangue de Pantera (1942), A Morta-Viva (1943), O Homem-Leopardo (1943), A Sétima Vítima (1943), O Navio Fantasma (1943), A Maldição do Sangue da Pantera (1944), Ilha dos Mortos (1945), O Túmulo Vazio (1945) e Asilo Sinistro (1946).
Para os três primeiros filmes (Sangue de Pantera, A Morta-Viva e O Homem-Leopardo), o escolhido para a direção foi o francês Jacques Tourneur (amigo de Lewton, responsável no futuro pelos excelentes A Noite do Demônio, 1957 e Farsa Trágica, 1964). Rodado em pouco menos de 3 semanas e com um orçamento de US$ 134 mil, o filme arrecadou US$ 4 milhões, a maior renda do estúdio em 1942. As críticas na época foram comedidas, todavia, com o passar dos anos Sangue de Pantera foi redescoberto e teve sua importância cinematográfica reconhecida.
O roteiro foi escrito pelo estreante DeWitt Bodeen, levemente inspirado no conto The Bagheeta, de autoria do próprio Val Lewton, publicado na Weird Tales em julho de 1930; o conto por sua vez teria sido motivado pela fobia que o cineasta teria de gatos. Já o enredo desenvolvido por Bodeen se acomodava às necessidades do estúdio e ao conceito criativo de Lewton, direcionando a trama a uma abordagem psicológica, intimista e simbólica. O roteirista também aproveitou para desenvolver adequadamente a complexidade das personagens, principalmente a da protagonista (Irena seria uma vítima, uma heroína ou uma vilã?), cuja conduta duvidosa permitia uma interpretação mais ampla. Cenas que precisassem de efeitos especiais ou maquiagens foram deixadas de lado, o que concedeu ainda ao longa características sóbrias, evitando que no futuro o filme se tornasse datado ou inserido (e esquecido) no rol dos genéricos monster movies que invadiram os cinemas norte-americanos nas décadas de 40 e 50. Esta sobriedade é em partes abandonada no último ato, já que, por uma imposição da RKO, o “monstro” é finalmente mostrado. Contudo, a transformação é discreta e o visual realista do felino não compromete a experiência do espectador.
Já a trilha sonora de Roy Webb é delicada, contudo presente e efetiva, se adequando à proposta de sobriedade dos realizadores.
O elenco, pouco conhecido na época, é centralizado no casal formado pela atriz francesa Simone Simon interpretando Irena Dubrovna e seu par romântico vivido pelo ator nova-iorquino Kent Smith, como Oliver Reed. As atuações são convencionais e não se destacam. O leitor, caso não esteja acostumado a filmes mais antigos, pode estranhar a artificialidade dos diálogos, característica comum às produções deste período.
Apenas como uma curiosidade, há uma sequência que deve chamar a atenção dos fãs do gênero: o alvoroço entre os pássaros engaiolados quando Irena entra em uma loja de animais, situação que remete à perturbadora visita de Damien ao zoológico, no futuro clássico A Profecia (1976). Outro fato, que deve passar despercebido, é o reaproveitamento de parte dos cenários do filme Soberba, em especial a mansão onde vive o casal principal.
Em 1944, uma continuação oficial foi distribuída nos cinemas: A Maldição do Sangue da Pantera (The Curse of the Cat People), dirigida por Gunther von Fritsch e Robert Wise. Ainda que o filme traga algumas conexões com a produção original, a trama segue um desenvolvimento completamente diferente, o que torna esta sequência interessante e com valores próprios. Já exatamente quatro décadas depois do lançamento de Cat People – Sangue de Pantera, em 1982, uma refilmagem de Paul Schrader (famoso roteirista de Taxi Driver, 1976) e estrelada pela belíssima Nastassja Kinski como Irena estreou nos cinemas, desta vez deixando de lado a ambivalência e as metáforas do original e intensificando a sensualidade da protagonista.
Para os colecionadores de plantão ainda é possível encontrar em lojas virtuais especializadas o DVD nacional simples lançado pelo selo independente Magnus Opus; aqueles que quiserem apenas conferir se o longa realmente apresenta tantas qualidades, Sangue de Pantera está em cartaz na plataforma de streaming HBO Max no momento em que esta crítica é escrita.
Enfim, os méritos de Sangue de Pantera vão além das possibilidades de interpretação psicológicas e metafóricas (que são muitas), e se concentram principalmente em sua qualidade como obra cinematográfica. É um longa-metragem fantástico pela habilidade e elegância com que trabalha o incerto, um clássico a ser redescoberto pelos amantes da sétima arte e do gênero de horror.