Sangue de Pantera (1942)

4.7
(15)

Sangue de Pantera
Original:Cat People
Ano:1942•País:EUA
Direção:Jacques Tourneur
Roteiro:DeWitt Bodeen
Produção:Val Lewton
Elenco:Simone Simon, Kent Smith, Tom Conway, Jane Randolph, Jack Holt, Henrietta Burnside, Alec Craig, Eddie Dew, Dot Farley, Mary Halsey, Alan Napier, Murdock MacQuarrie

“… há uma necessidade psicológica de lançar mal sobre o mundo. E todos nós abrigamos um desejo pela morte. Você teme a pantera, mas ela lhe atrai muito mais.”

Irena Dubrovna é uma jovem estilista de origem sérvia que está aterrorizada pela possibilidade de que uma suposta maldição, herdada de seus antepassados, possa ser real e não apenas um mito.

Ainda criança, ouvia os antigos contarem sobre o tempo em que seu povo foi escravizado por estrangeiros. Os piores infortúnios recaíram sobre gente simples que, para sobreviver, passou a adorar entidades malignas; muitos ressurgiram como bruxas e escaparam para as montanhas. Os descendentes deste povo estariam condenados a se transformar involuntariamente em um animal selvagem, sempre que acometidos pelas emoções humanas mais primitivas, como o desejo, a raiva ou a tristeza.

Sem saber como agir, ela decide que é mais seguro afastar-se do cético Oliver Reed, o homem que conheceu em uma de suas visitas ao zoológico e que hoje é seu marido. Ela tenta avisá-lo dos riscos, mas ele insiste que seu temor não passa de um delírio e a convence a visitar o respeitado psiquiatra Dr. Louis Judd. Porém, o perigo é cada vez mais concreto, e Irena lentamente se torna uma ameaça para todos que a cercam.

Sangue de Pantera pode ser considerado um bom exemplo do subgênero horror psicológico, tão em evidência no momento atual. O longa explora com enorme competência a ambiguidade, a incerteza e a sugestão; o medo e o suspense são instaurados de maneira sutil por um enredo que furta-se de mostrar – deixando o trabalho da interpretação por conta da imaginação do espectador. Somado a isso, o equilíbrio entre a qualidade técnica e a inventividade, que contrastava com a maioria das produções extravagantes do gênero lançadas na época, garantiu que o filme alcançasse o merecido e incontestável status de cult.

Entretanto, é curioso que parte deste apuramento técnico e criatividade seja decorrente das necessidades relacionadas às limitações do orçamento. Contextualizando a produção, Sangue de Pantera foi realizado em 1942 pela RKO Pictures, mesmo estúdio responsável por sucessos como King Kong (1933), mas que enfrentava dificuldades financeiras após o alto investimento em Cidadão Kane (1941) e Soberba (1942) – obras de Orson Welles, hoje consideradas marcos importantíssimos do cinema, porém que não foram bem recebidas pelo público quando lançadas. Neste período complicado, a RKO, inspirada no sucesso de bilheteria dos conhecidos Monstros da Universal (os populares Frankensteins, Dráculas e Lobisomens), buscou o Val Lewton (produtor nascido na região da Ucrânia e residente em solo americano) e encomendou uma série de filmes de horror de baixo orçamento. Conta a história que cada longa-metragem deveria custar no máximo US$ 150 mil, enquanto Lewton receberia apenas US$ 250 por semana. No entanto, o cineasta não se ateve a simplesmente replicar o modelo da Universal e optou por investir em tramas menos explícitas, mais sombrias e obscuras.


No final, o fruto desta iniciativa foi uma série de longas-metragens que alcançaram o reconhecimento nas bilheterias e evitaram a falência da RKO Radio Pictures. Foram rodados, além de Sangue de Pantera (1942), A Morta-Viva (1943), O Homem-Leopardo (1943), A Sétima Vítima (1943), O Navio Fantasma (1943), A Maldição do Sangue da Pantera (1944), Ilha dos Mortos (1945), O Túmulo Vazio (1945) e Asilo Sinistro (1946).

Para os três primeiros filmes (Sangue de Pantera, A Morta-Viva e O Homem-Leopardo), o escolhido para a direção foi o francês Jacques Tourneur (amigo de Lewton, responsável no futuro pelos excelentes A Noite do Demônio, 1957 e Farsa Trágica, 1964). Rodado em pouco menos de 3 semanas e com um orçamento de US$ 134 mil, o filme arrecadou US$ 4 milhões, a maior renda do estúdio em 1942. As críticas na época foram comedidas, todavia, com o passar dos anos Sangue de Pantera foi redescoberto e teve sua importância cinematográfica reconhecida.

O roteiro foi escrito pelo estreante DeWitt Bodeen, levemente inspirado no conto The Bagheeta, de autoria do próprio Val Lewton, publicado na Weird Tales em julho de 1930; o conto por sua vez teria sido motivado pela fobia que o cineasta teria de gatos. Já o enredo desenvolvido por Bodeen se acomodava às necessidades do estúdio e ao conceito criativo de Lewton, direcionando a trama a uma abordagem psicológica, intimista e simbólica. O roteirista também aproveitou para desenvolver adequadamente a complexidade das personagens, principalmente a da protagonista (Irena seria uma vítima, uma heroína ou uma vilã?), cuja conduta duvidosa permitia uma interpretação mais ampla. Cenas que precisassem de efeitos especiais ou maquiagens foram deixadas de lado, o que concedeu ainda ao longa características sóbrias, evitando que no futuro o filme se tornasse datado ou inserido (e esquecido) no rol dos genéricos monster movies que invadiram os cinemas norte-americanos nas décadas de 40 e 50. Esta sobriedade é em partes abandonada no último ato, já que, por uma imposição da RKO, o “monstro” é finalmente mostrado. Contudo, a transformação é discreta e o visual realista do felino não compromete a experiência do espectador.

Outro destaque é a fotografia em preto e branco assinada pelo italiano Nicholas Musuraca, carregada de contrastes entre luzes e sombras, remetendo ao cinema expressionista alemão. Esta característica, somada à ambientação urbana e certa melancolia do enredo, concede a Sangue de Pantera uma certa aura de Film Noir. Numa das sequências mais inspiradas do longa, vemos a rival da protagonista fugindo, à noite, pelas calçadas vazias e pouco iluminadas de Nova York. Não é mostrado o que a persegue, ou se realmente algo está a sua espreita. Vemos apenas o seu rosto assustado com as sombras que nada têm de sobrenatural, mas parecem vivas, o vento balançando os galhos das árvores, os passos cada vez mais rápidos da vítima que foge de um algoz invisível. Uma tradução magistral do medo da personagem em uma cena de imensa beleza visual.

Já a trilha sonora de Roy Webb é delicada, contudo presente e efetiva, se adequando à proposta de sobriedade dos realizadores.

O elenco, pouco conhecido na época, é centralizado no casal formado pela atriz francesa Simone Simon interpretando Irena Dubrovna e seu par romântico vivido pelo ator nova-iorquino Kent Smith, como Oliver Reed. As atuações são convencionais e não se destacam. O leitor, caso não esteja acostumado a filmes mais antigos, pode estranhar a artificialidade dos diálogos, característica comum às produções deste período.

Apenas como uma curiosidade, há uma sequência que deve chamar a atenção dos fãs do gênero: o alvoroço entre os pássaros engaiolados quando Irena entra em uma loja de animais, situação que remete à perturbadora visita de Damien ao zoológico, no futuro clássico A Profecia (1976). Outro fato, que deve passar despercebido, é o reaproveitamento de parte dos cenários do filme Soberba, em especial a mansão onde vive o casal principal.

Em 1944, uma continuação oficial foi distribuída nos cinemas: A Maldição do Sangue da Pantera (The Curse of the Cat People), dirigida por Gunther von Fritsch e Robert Wise. Ainda que o filme traga algumas conexões com a produção original, a trama segue um desenvolvimento completamente diferente, o que torna esta sequência interessante e com valores próprios. Já exatamente quatro décadas depois do lançamento de Cat People – Sangue de Pantera, em 1982, uma refilmagem de Paul Schrader (famoso roteirista de Taxi Driver, 1976) e estrelada pela belíssima Nastassja Kinski como Irena estreou nos cinemas, desta vez deixando de lado a ambivalência e as metáforas do original e intensificando a sensualidade da protagonista.

Para os colecionadores de plantão ainda é possível encontrar em lojas virtuais especializadas o DVD nacional simples lançado pelo selo independente Magnus Opus; aqueles que quiserem apenas conferir se o longa realmente apresenta tantas qualidades, Sangue de Pantera está em cartaz na plataforma de streaming HBO Max no momento em que esta crítica é escrita.

Enfim, os méritos de Sangue de Pantera vão além das possibilidades de interpretação psicológicas e metafóricas (que são muitas), e se concentram principalmente em sua qualidade como obra cinematográfica. É um longa-metragem fantástico pela habilidade e elegância com que trabalha o incerto, um clássico a ser redescoberto pelos amantes da sétima arte e do gênero de horror.

 

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João Pires Neto

João Pires Neto é apaixonado por livros, filmes e música, formado em Letras, especialista em Literatura pela PUC-SP, colaborador do site Boca do Inferno desde 2005, possui diversos contos e artigos publicados em livros e revistas especializadas no gênero fantástico. Dedica seu pouco tempo livre para continuar os estudos na área de literatura, artes e filosofia

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