Os Demônios (1971)

4.6
(12)

Os Demônios
Original:The Devils
Ano:1971•País:UK
Direção:Ken Russell
Roteiro:Ken Russell
Produção:Ken Russell, Robert H. Solo
Elenco:Oliver Reed, Vanessa Redgrave, Dudley Sutton, Max Adrian, Murray Melvin, Grahan Armitage.

A história do padre Urbain Grandier é daquelas que, de tão incríveis, atravessaram os séculos e se “eternizaram” (até o momento) por meio da arte de nosso tempo. As acusações de bruxaria sofridas pelo pároco, e de envolvimento com as possessões de Loudun, na França católica do século XVII,  são muito representativas de um mal que nos chega até os dias de hoje – e que talvez provoque muito mais tragédias que qualquer demônio.

Urbain Grandier foi um representante da Igreja Católica que missionou na cidade medieval de Loudun, no noroeste da França. A cidade também contava com um convento de freiras ursulinas, uma ordem religiosa católica de grande importância na época da Contrarreforma (a partir de 1545) e que se destinava à formação e assistência de meninas pobres. A superiora do convento das irmãs ursulinas de Loudun, madre Joana dos Anjos, viria a se tornar figura mítica entre os casos de possessão demoníaca inspirando muitas histórias do gênero.

The Devils, ou Os Demônios, de Ken Russell, é uma das interessantes versões que tentam resgatar a controversa narrativa, que tem como ápice a morte do padre Grandier na fogueira.

Na obra, Grandier, em grande atuação de Oliver Reed, é um padre rebelde e ativo politicamente, sempre à frente no que diz respeito aos interesses da cidade – o que provoca grandes embates com as autoridades regionais que têm interesse em reorganizar o espaço público em seu favor. Um espírito filosófico e uma compreensão muito profunda e à frente do seu tempo sobre o Evangelho, além de uma postura assumidamente “pecadora” (ou apenas não celibatária), o tornam o epicentro de uma grande confusão, ao atrair para si o ódio das autoridades e o desejo das mulheres. Entre estas, está madre Joana dos Anjos, cujos desejos cada vez mais intensos tornam Grandier o objeto principal de sua obsessão.

William Friedkin chocaria o mundo com sua versão de uma possessão demoníaca com O Exorcista apenas dois anos depois, mas The Devils já dava mostras do quão longe o cinema poderia ir, não só na crítica à Igreja Católica, mas também nas “heresias” apresentadas em tela. O filme é recheado de cenas profanas, e tem em seu protagonista, que oscila entre a santidade e a delinquência (ainda que um delinquente filósofo), um rebelde cuja atitude original causaria choque à moral cristã em qualquer época.

O elenco inspiradíssimo, aliás, é particularmente digno de nota. Madre Joana dos Anjos, interpretada de forma magistral por Vanessa Redgrave, consegue ser despreocupadamente sinistra em uma das melhores composições de personagem em filmes desse subgênero. Ken Russell, que também assinou o roteiro, elaborou uma grande personagem, que chega como secundária ante o protagonismo de Grandier e da trama política central, mas rouba todas as cenas em que aparece.

A despeito do que se sabe sobre a verdadeira madre Joana dos Anjos, a versão de Russell é uma das mais complexas e completas em filmes de possessão demoníaca, muito pelo realismo e profundidade das situações que encena. O humor, ora seco e amargo, ora sedento e lascivo, só encontra alívio na breve infinitude do gozo sexual. É uma figura pitoresca, cuja psicologia perturbada rende várias das melhores e mais insanas cenas do filme.

Madre Joana é tão cuidadosamente construída que até a cenografia aqui vem em seu favor. A caótica madre superiora sempre surge em lugares rebaixados ou que remetem a prisões, algo que refere-se, por um lado, à sua grande vaidade numa tentativa de apagar uma grande deformidade física que carrega nas costas, mas que, por outro lado, só acentua sua tristeza, amargura e isolamento em relação às suas irmãs do convento.

Grahan Armitage, que interpreta o rei Louis XVIII da França, é outra presença forte em cena. Tão espirituoso quanto sádico, ele também preenche todos os espaços da tela com sua personalidade gigantesca e sua fina ironia anticlerical.

A versão de Ken Russell para a história do padre Urbain Grandier e da madre Joana dos Anjos não foi a primeira a ser contada. Mesmo antes, na década de 1960 e recuando até o século XVIII, várias versões e adaptações foram produzidas para os palcos dos teatros e para as páginas da literatura.

Na literatura moderna, Aldous Huxley foi um dos nomes a explorar o caso no livro Os Demônios de Loudun (a obra que inspirou Ken Russell), de 1952. No cinema, outra versão bem interessante é a Matka Joanna od Aniolów, de 1961 e dirigida por Jerzy Kawalerowicz. Ligeiramente diferente da versão inglesa e dos relatos do caso original, essa é uma das primeiras produções sobre possessão demoníaca para o cinema e um marco do cinema polaco.

The Devils é um filme que tem todo o potencial para figurar entre os grandes do horror, mas que por algum motivo parece ter ficado na prateleira do segundo escalão dos anos de 1970, ali ao lado de filmes como Comboio do Medo (William Friedkin, 1977) e Martin (George A. Romero, 1976). É uma produção que num primeiro momento parece algo barato saído dos estúdios Hammer, mas logo mostra substância suficiente para passar no teste do tempo e ainda ter algo relevante a dizer – especialmente nos dias atuais.

Em tempo, The Devils levou o prêmio de melhor direção no Venice Film Festival e no National Board of Review (premiação estadunidense) do seu ano de lançamento, e foi banido em diversos países devido ao conteúdo considerado excessivo ao mesclar sexo, violência e religião.

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Pedro Emmanuel

Cearense, jornalista, quase geógrafo (ainda cursando), meio praieiro e ligeiramente antissocial. Minha viagem é aprender o máximo possível sobre a vida e sobre a morte, e assim ir assimilando alguns mistérios da existência. Vivo como se fosse um detetive, mas minha mente vagueia muito. Sou fã de Star Trek, Jefferson Airplane, e do Massacre da Serra Elétrica original.

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