Possessão (1981)

4.3
(29)

Possessão
Original:Possession
Ano:1981•País:França, Alemanha
Direção:Andrzej Zulawski
Roteiro:Frederic Tuten, Andrzej Zulawski
Produção:Marie-Laurie Reyre
Elenco:Isabelle Adjani, Sam Neill, Margit Carstensen, Heinz Bennent, Carl Duering

Quando se fala em “possessão” em termos de cinema de horror, é natural imaginarmos imediatamente todo esse subgênero, expandido a partir do clássico O Exorcista, de 1973, e que chega aos dias de hoje com poucos lapsos de brilhantismo ao longo dos anos. A possessão demoníaca é até hoje uma das fantasias (?) cinematográficas que mais rendem argumentos, e como temática absolutamente cristã, os vilões ou antagonistas são sempre associados a uma moral rígida que foi desvirtuada e merece ser corrigida. O cineasta polonês Andrzej Zulawski subverte essa lógica em Possessão, lançado em 1981, ao tentar racionalizar a fé, e lançar uma crítica muito contundente às grandes estruturas sociais.

Sam Neill e Isabelle Adjani dão vida a um casal em véspera de separação. O marido, Mark, deixou um emprego de alto escalão (que nunca sabemos o que é) para estar em casa com o filho e a esposa, Anna, que está, literalmente, surtando. Isso fica claro já na primeira interação do casal, ainda nos primeiros minutos de filme. A partir desse momento, seguimos a câmera de Zulawski por toda essa perturbação conjugal: Anna quer deixar Mark, mas Mark não aceita, e quer entender os porquês.

Anna, por sua vez, também na tentativa de entender os próprios porquês, embarca numa viagem pesada. O que começou como um dilema existencial/filosófico saudável a respeito do que se quer e do que se pode ter, culmina numa quase compreensão que a leva à beira do colapso psíquico. Em sua inquietude, ela racionaliza as emoções associando sua falta de felicidade à falta de fé e, consequentemente, à falta de orientação ou sentido para a vida.

No bojo dessa sinuca filosófica, toda a questão feminina se apresenta, por meio das privações impostas pelos diversos papéis que a sociedade obriga às mulheres. O argumento, que pode ser percebido de forma superficial como o clichê do “vazio existencial”, mostra ao longo do filme toda a sua força, profundidade e gravidade, ocasionando na personagem uma série de transtornos psicológicos, com seus respectivos efeitos no corpo físico.

E nessa batalha espiritual, onde dois agentes, corpo e mente, que não conseguem se unir anseiam em desespero por serem “possuídos” por um sentimento qualquer que os integre em harmonia, Isabelle Adjani entrega absolutamente tudo para o público. Baseado em outros filmes em que a vi em cena, esse é disparado seu melhor trabalho. Apesar de parecerem exagerados alguns reflexos do seu papel, é importante lembrar que estamos observando alguém que está à beira da loucura em cena.

Sam Neill também não fica atrás. Como marido abusivo, passivo-agressivo e autoritário (e com a estética ideal para isso), ele também entrega uma atuação muito boa vivendo seu inferno pessoal com o término do relacionamento  e expurgo de seus próprios demônios. Seu processo de cura, por sua vez, é mais equilibrado que o de sua esposa, visto que as estruturas sociais facilitam a vida dos homens enquanto aprisionam a das mulheres (daí o dilema inicial da esposa da esposa e sua trágica consequência).

A trilha sonora cortante de Andrzej Korzynski dá o tom de ansiedade pela iminência do colapso, colapso que pode ser pressentido por todo o filme, seja nas disputas emocionais do casal, seja nas passagens pelas ruas vazias de Berlin, cidade onde se passa a trama e, àquela altura, igualmente dividida por um muro com duas correntes de pensamento distintos – tal qual a protagonista da história. Tudo em Possessão é ambíguo!

Lá pelas tantas, o filme começa a ficar meio onírico e ganhar tons de fantasia de horror e surrealismo, mas a essa altura, o recado já foi dado. Tendo a estrutura familiar como foco da experiência, ele mostra que o inferno é construído diariamente em sociedade, que alimenta os demônios do homem com ideias deturpadas e ultrapassadas sobre ordem, liberdade, o bem, o mal, poder, e tantos outros assuntos.

O roteiro, escrito em parte pelo próprio Zulawski, nos apresenta com maestria as nuances do transtorno do casal, enquanto a direção nos lança pelos fluxos de consciência dos personagens, ora lógicos, ora emocionais, sempre confusos, mas com momentos de grande clareza.

Possession é um filme pesado, mas muito “saboroso” de se assistir – se é que isso é possível. É daquelas produções completas, redondas, “de arte”, que estimulam todos os sentidos físicos com várias camadas de perspectiva que merecem ser estudadas, pois tudo se integra de forma profunda, quase sinestésica. Para além da arte e do espírito que a obra reflete, o filme é uma fotografia magistral de seu tempo, com seu enquadramento político, filosófico e comportamental  que coloca de forma lógica o demônio numa posição muito paradoxal aos olhos de uma estrutura cristã e conservadora: ele surge na privação da liberdade.

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Média da classificação 4.3 / 5. Número de votos: 29

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Pedro Emmanuel

Cearense, jornalista, quase geógrafo (ainda cursando), meio praieiro e ligeiramente antissocial. Minha viagem é aprender o máximo possível sobre a vida e sobre a morte, e assim ir assimilando alguns mistérios da existência. Vivo como se fosse um detetive, mas minha mente vagueia muito. Sou fã de Star Trek, Jefferson Airplane, e do Massacre da Serra Elétrica original.

5 thoughts on “Possessão (1981)

  • 01/09/2022 em 09:55
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    Mas e quanto a criatura que surge no filme, se, pelo roteiro e critica aqui exposta se trata de algo psiquico, o corpo assassinado do investigador bem como as partes de corpos na geladeir, há como explicar que outros a enxerguem ?

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  • 31/07/2022 em 20:56
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    É um dos poucos filmes que te conquistam mais pela identificação com as sensações que ele transmite do que pela interpretação ou “entendimento” dele. Não conseguiria explicar muita coisa que vi nele, mas me identifiquei com cada sensação que ele transmitiu. A quebra de todas as “verdades” psicológicas que temos sobre sociedade, família e religião é transmitida aqui de forma brutal. E não dá pra não comentar que a interpretação de Isabelle Adjani neste filme é umas das mais espetaculares do cinema como um todo. É um clássico não só do terror psicológico, mas um clássico da sétima arte.

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  • 05/07/2022 em 08:59
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    ótima critica um dos poucos filmes que considero 10/10
    fiquei tenso por todo o filme e achei maravilhoso demais
    Recomendo sempre a amigos mas raramente assistem

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  • 15/03/2022 em 22:36
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    Eu entendi e ao mesmo tempo não entendi porra nenhuma desse filme, porém adoro hahaha
    Sei que tem muitas metáforas e explicações,e cabe a cada um interpretar de um jeito.
    Enfim, muito impactante e realmente, ótimas interpretações, principalmente da Isabelle,a cena dela naquele colapso é fodastica 🤣

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  • 12/03/2022 em 18:47
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    Finalmente uma crítica no Boca do Inferno desse filme que está no meu top 5 de filmes preferidos de todos os tempos! Ótimo texto.

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