O horror real e não muito distante de Soft & Quiet

4.3
(15)

Sem meias palavras, Soft & Quiet é o filme mais aterrorizante do ano passado. E eu posso provar. Não deu para Ghostface, Michael Myers, Pinhead e nem muito menos Leatherface, para o Telefone Preto até mesmo do Sr. Harrigan, para founds footages como Deadstream, o Clube da Meia-Noite de Mike Flanagan ou sequer outras assombrações e demônios que possam ter passeado pela Sétima Arte em 2022. O terror em tempo real de Beth de Araújo, filmado todo em plano-sequência, é uma produção tão indigesta e perturbadora que faria o palhaço Art se esconder em seu saco preto. Pelo menos fez o produtor da Blumhouse, Jason Blum, sentir-se mal, algo jamais conseguido em qualquer outro filme da produtora. Não há animais sendo mortos de verdade, nem carne e cérebro humano sendo digeridos onscreen, não há uma gota de sangue sequer, nem exposição de vísceras e entranhas, desmembramentos e tudo que compõe o horror gráfico. E a razão de tamanha repulsa se deve ao pior monstro que a imaginação seria incapaz de criar.

Não são psicopatas moldados pelo cinema de horror. Mas pessoas que você sabe que existem por aí, com um nível de preconceito doentio, que se sentem superiores pela cor da pele e condição financeira. Nem é necessário dar exemplos reais para que o infernauta entenda do que estou falando, embora recomendo que assista a Um Crime Americano. Uma pesquisa nos portais de notícia para você encontrar excrementos que fazem parte da sociedade, que mencionam religiosidade e família, enquanto jogam água ou incendeiam mendigos, expulsam pessoas de estabelecimentos, desmerecem regionalidades, destroem acervos e obras clássicas, praticam bullying como um exercício de diversão social. Soft & Quiet é um simbólico recorte disso.

Nele, acompanhamos todos os passos de Emily (Stefanie Estes), uma professora de ensino infantil, que lamenta por ainda não conseguir engravidar. Após realizar mais um teste sem sucesso, ela deixa transparecer um olhar atravessado para a faxineira da escola e ainda instrui o garoto Brian (Jayden Leavitt) a reclamar pelo chão escorregadio, sem que isso o tenha afetado. Ela está levando uma torta para um encontro com amigas de um grupo que ergue a bandeira das “filhas da geração ariana“. No percurso é acompanhada por Leslie (Olivia Luccardi), também convidada por Kim (Dana Millican), até o local que fica no andar superior de uma igreja (pasmem!). Assim que chegam, sendo recebidas também por Marjorie (Eleanore Pienta), Alice (Rebekah Wiggins) e Nora (Nina E. Jordan), elas comem uma torta com cortes em forma de suástica enquanto se apresentam e contam suas experiências “desagradáveis” com latinos e negros, sempre com a perplexidade das demais. Aqui cabe uma pequena crítica à obra: não precisava dessa torta, das moças fazendo reverência nazista, do título do grupo em uma lousa, uma vez que o bate-papo delas já evidenciava seus interesses.

Existe a intenção delas de criar uma revista, provavelmente intitulada “Soft & Quiet“, onde poderiam expor suas experiências e formar opiniões, além de Emily receber a sugestão de gerir uma escola. Assim que são expulsas pelo padre local – “Não pretendo denunciá-las, mas quero que saiam” -, as mulheres planejam comprar vinho no estabelecimento de Kim para um “after” na casa de Emily. Porém duas orientais, as irmãs Lily (Cissy Ly) e Anne (Melissa Paulo), adentram o mercado para também comprar bebida, e são hostilizadas, cercadas e ofendidas pelas moças, que ainda se sentem vitimas. Depois que vão embora, Leslie sugere uma visita à casa das garotas para lhes dar uma lição, um susto. O marido de Emily, Craig (Jon Beavers), se mostra contrário à atitude, não quer problemas com a justiça, mas é cerceado por falas como “macho tem que defender a esposa“, “precisa ter atitude de homem“.

Aparentemente sem cortes, toda a sequência, incluindo a tal visita, é mostrada cronologicamente – um recurso justificado pela intenção da diretora de não dar tempo para o público respirar diante do absurdo – assim como as ações crescentes em insanidade e gravidade. Mesmo sem precisar chocar o público com violência física explícita – a ideia da cenoura já perturba por si só -, é possível entender o que está acontecendo e é inevitável não se sentir mal.

Uma narrativa agressiva e infelizmente real, contando com atuações convincentes de todo o elenco, Soft & Quiet é a vitrine de uma sociedade não muito distante do espectador, com pessoas que não se importam com as minorias, citam vitimismo e lacração (aguardem os comentários abaixo). Se isso não é aterrorizante o suficiente para você, melhor que fique com os filmes de terror tradicionais, com seus monstros caricatos e personagens artificiais.

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Marcelo Milici

Professor e crítico de cinema há vinte anos, fundou o site Boca do Inferno, uma das principais referências do gênero fantástico no Brasil. Foi colunista do site Omelete, articulista da revista Amazing e jurado dos festivais Cinefantasy, Espantomania, SP Terror e do sarau da Casa das Rosas. Possui publicações em diversas antologias como “Terra Morta”, Arquivos do Mal”, “Galáxias Ocultas”, “A Hora Morta” e “Insanidade”, além de composições poéticas no livro “A Sociedade dos Poetas Vivos”. É um dos autores da enciclopédia “Medo de Palhaço”, lançado pela editora Évora.

3 thoughts on “O horror real e não muito distante de Soft & Quiet

  • 28/01/2024 em 17:52
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    Filme extremamente difícil de ver, mais difícil ainda, digerir. Tive vontade de desligar nos primeiros momentos, pelo ASCO E REPULSA ABSOLUTA que tenho de “gente” assim. Mas segui vendo. Não sei o que pensar além de que: “porra, eu queria que isso só existisse na ficção, criado por uma mente muito doentia e desconectada da realidade”. Infelizmente é q realidade. Vivemos nessa merda.

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  • 19/01/2023 em 13:41
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    Nenhuma ficção jamais vai ser mais assustadora que essa realidade perversa que vivemos.

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  • 10/01/2023 em 19:45
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    Um filme completamente real e muito perturbador, a forma como mostra a realidade é assustadora de tão verdadeira, crueldade ao extremo e bastante difícil de ver

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