Em 1973, William Friedkin deu vida ao clássico absoluto de exorcismo ao mostrar com ousadia o sofrimento da pequena Regan (Linda Blair) na tentativa de se libertar de uma entidade demoníaca traiçoeira. O terror vivido pela garota, sua mãe e os padres envolvidos deu um novo rosto ao cinema de Horror, ampliando o alcance de destruição da família tradicional. As cenas escatológicas somadas aos impressionantes efeitos de maquiagem e atuações marcaram a produção como uma das mais importantes do gênero, graças às críticas positivas e à reação do público nas exibições da época. Mas, o demônio que visitou o corpo da adolescente e trouxe marcas profundas na sua alma não é o mesmo que inspirou o livro e a série de TV.
William Peter Blatty, autor do livro que originou a obra, inspirou-se numa história real de possessão ocorrida no final da década de 40. Com mudanças significativas no argumento para torná-la ainda mais polêmica na adaptação, o que foi visto nos cinemas não tem a mesma intensidade narrativa do que a obra original e também é bastante inferior ao verdadeiro caso, sem se esquivar dos méritos dos realizadores. O que Friedkin transportou para a tela continua impressionante mesmo depois de mais de quarenta anos, mas não é a História Real. Com base no livro Exorcismo, publicado caprichosamente pela Darkside Books, você acompanhará nos próximos parágrafos a quarta edição da série Dissecando o Medo. Prepara-se para se apossar dos verdadeiros relatos que inspiraram o maior clássico de horror dos cinemas!
O Demônio se esconde nos detalhes…
Escrito pelo jornalista e pesquisador Thomas B. Allen, não é à toa que o livro Exorcismo tenha conquistado tantos elogios, incluindo do popular casal de investigadores de paranormalidade Ed e Lorraine Warren, quando apontaram a obra como “um documento fascinante e imparcial sobre a luta diária entre o bem e o mal.” E é bem mais do que isso. O texto envolveu anos de estudos e pesquisas, entrevistas e acesso a um material restrito, incluindo o diário de anotações de um padre, sobre os acontecimentos assustadores ocorridos em 1949. O resultado é uma obra de não-ficção, como um documentário, cheio de detalhes envolvendo o dia-a-dia daqueles que testemunharam e, obviamente, foram afetados pela possessão. Ao mesmo tempo em que desvenda a real face do demônio, o autor situa o leitor na época, com informações sobre a vida profissional dos envolvidos e o modo burocrático para se conseguir um exorcismo.
Um dos detalhes que mais chama a atenção é que o possuído, no caso um menino de 13 anos que o autor chama de Robert “Robbie” Mannheim, não ficava o tempo todo preso à cama, proferindo ofensas e gesticulando de modo obsceno: durante o dia, ele era um adolescente como qualquer outro, que gostava de brincar, era educado, interagia com os adultos e mantinha o bom-humor da idade; mas, na hora em que ia para a cama, o Mal se revelava em seu interior, chacoalhando a cama, urrando de dor e cuspindo em que se aproximava.
Apesar de apresentar o que foi testemunhado por 26 pessoas, Allen aponta também algumas causas patológicas para o ocorrido, conforme foi apontado por médicos e incrédulos no período. O autor se esquiva de uma posição sobre o tema, mesmo sabendo que o conteúdo é extremamente convincente em sua exposição pesada e azeda. A longa jornada entre a possessão e o que acontece com o hospedeiro do demônio é fascinante, permitindo ao leitor e aos curiosos sobre o tema um dossiê frio e detalhista, dramático e assustador.
Para complementar a obra, além das inúmeras referências apresentadas no final, a Darkside Books traz um painel de comunicação Ouija, o instrumento que desperta o Mal no garoto, por consequência da perda repentina da tia. Inclusive, é esse falecimento e o que ela acreditava os principais tópicos de discussão nas páginas iniciais. Seria um demônio mesmo ou é um caso típico de poltergeist?
O Demônio pede passagem…
Em Cottage City, em Maryland, um garoto de 13 anos, tinha uma vida como a de qualquer outro da mesma idade. Pessoas que conviveram com o jovem na época, como vizinhos, amigos e o Dr. Alvin Kagey o descreveram como um garoto tímido, magro, sem muita popularidade, arredio, mas bastante apegado aos estudos. Sua família também era tradicional, simples, considerada trabalhadora e tranquila. Mas, foi no verão de 1948, que a tia decidiu ensiná-lo a brincar com uma Tábua Ouija. “R“, como era chamado ou “Robbie” no livro de Allen, passava dias e até semanas com aquele “jogo” até o falecimento da tia – no livro foi chamada de Henrietta – por aparentes “causas naturais“. As aspas são necessárias porque em 1949 morte por causas naturais permite muitas possibilidades. Por exemplo, se você for atropelado por um ônibus, a sua morte poderia ser natural porque qualquer pessoa que fosse atingida por um veículo grande naturalmente poderia morrer.
Com a morte da tia, coisas esquisitas começam a acontecer na residência. Sons estranhos – batidas, rangimentos, arranhões – vindos de lugares isolados, o movimento de objetos – como a dança de um candelabro – e até o salto de um quadro com a imagem de Jesus Cristo foram alguns dos relatos da época. A família chegou até a contratar alguém para se livrar de supostos roedores, mas nada suspeito foi encontrado. Eles passaram a acreditar que a falecida tia estivesse tentando uma comunicação, embora os barulhos aumentassem cada vez mais. Certa noite, o som era tão insuportável que os moradores imaginavam que houvesse uma marcha de espíritos em sua casa, como soldados em treinamento. Descartaram o envolvimento da tia, quando começaram a testemunhar o chacoalhar da cama do garoto. Não podia ser Henrietta, até mesmo porque ela não poderia querer o mal da família. Ou poderia?
O pesadelo continuou nas noites seguintes. Móveis pesados se moviam como se fossem vivos: guarda-roupa, mesa de jantar, mesinha da sala… No entanto, a cena mais bizarra foi testemunhada por uma pessoa que não era da familia. Quando o pai do Dr. Kagey estava visitando a casa, em 1949, ele lembrou de um episódio em que o garoto, sentado em um sofá, foi atirado para longe do móvel em um movimento sobrenatural. Foi a partir daí que viram que algo perigoso habitava a moradia, e não estava nem um pouco satisfeito em tê-los ali.
Esse tipo de ocorrência não podia chegar à mídia. Era 1949. Época em que a discrição era mais bem vista do que a exposição. Os parentes e conhecidos de “R” não queriam que a cidade os visse como doidos que quisessem chamar a atenção. Isso justifica a ausência de notícias sobre o tema, o que permitiu que todos permanecessem em sigilo até hoje. Mas, também alimentou a descrença, uma vez que a falta de fotos e testemunhos poderiam indicar uma fraude.
E falando no Diabo…
Não demorou muito para “R” começar a apresentar sintomas de possessão. Seu comportamento passou a ser agressivo, violento, enquanto seu corpo apresentava marcas profundas, sem que houvesse explicação para elas. A família levou o garoto primeiramente a um clínico; depois foi a vez de psiquiatras. Mas, ele não agia de modo estranho nas consultas, e os médicos não encontraram nada que pudesse justificar sua conduta. Foi então que decidiram buscar apoio na Igreja Católica, inicialmente com o Padre Albert Hughes – este faleceu em 1980, mas colegas como o Padre Bober puderam ajudar a elucidar algumas das ocorrências da época. Hughes conheceu o menino em fevereiro de 1949, e já o definiu como tendo um “olhar escuro, como se não houvesse nada por trás dele.“. De acordo com o padre, assim que ele colocou seus livros sobre a mesa da casa de “R“, o garoto não parava de olhar fixamente para eles, em especial para a Bíblia. Essa atitude, assim como a forma como via outros objetos sagrados como cruzes, estátuas, escrituras, medalhões…, evidenciava um sinal de possessão. E o que dizer da cadeira do padre que parecia estar levitando no primeiro contato com o menino? Não restava dúvidas: aquele garoto precisava de ajuda espiritual!
Nesse ponto há algumas diferenças entre a narrativa de Allen e algumas fontes na internet. Elas dizem que o Padre perguntou em latim “Qual é seu nome?” e “R” respondeu na mesma língua: “Eu sou Legião.” A capacidade de falar línguas que desconhece, como o grego e o latim, é uma referência bastante comum nos relatos envolvendo exorcismos. Se houver apenas uma perturbação mental, a pessoa não saberá se comunicar em uma língua diferente, principalmente um garoto de 13 anos ainda nos estudos iniciais. E a afirmação de ser “legião“, além de uma referência à possessão exposta na Bíblia, também indica que há mais de um demônio apossando o corpo do garoto – diferente de Regan, de O Exorcista, incomodada apenas por Pazuzu.
Os exorcismos são práticas consideradas medievais, e estão diretamente relacionadas ao cristianismo e ao catolicismo. Não que não exista definições para possessões em outras religiões – Allen explica direitinho em sua literatura como uma presença demoníaca é vista por crenças diferentes -, mas as mais tradicionais e as mais procuradas são o cristianismo e o catolicismo. E o livro também diz que, apesar dos sintomas clássicos muitas vezes explorado pelo cinema, cada exorcismo e possessão são diferentes, exigindo técnicas e rezas próprias.
Conhecendo os rituais necessários, embora fosse o seu primeiro, o Padre Hughes sugeriu que “R” fosse internado em um hospital, em Washington, DC., comandado por monges jesuítas. À noite, o menino entrava em um estado de absoluto descontrole, completamente agressivo, violento, agitando-se de maneira assustadora. Por três noites, o exorcismo foi tentado pelo Padre, mas não surtiu o efeito necessário. Pelo contrário. “R” passou a agir com mais violência, blasfemando e cuspindo sobre os presentes. Em dado momento, ele libertou uma das mãos presa à cama do hospital e retirou uma das molas abaixo do colchão e desferiu um golpe no padre, rasgando seu braço do pulso ao cotovelo, encerrando definitivamente as ações do Padre Hughes no caso.
Preocupada com o afastamento do padre, a família entrou em um estado de desânimo absoluto. “R” continuou agindo de forma monstruosa nas noites seguintes, incluindo algumas inscrições em seu corpo. Em uma delas – “Saint Louis“, que apareceu no peito – sugeriu que eles buscassem apoio de familiares na cidade, acreditando que a comunicação possa ser uma reação do menino como um pedido de ajuda. A mudança piorou as ocorrências. Médicos não conseguiam ajudar, obrigando os pais a procurarem novamente a Igreja Católica. Foi quando conheceram o Padre William Bowdern, da Diocese St. Louis. Com sua experiência no Exército dos Estados Unidos, talvez ele pudesse ter as ferramentas necessárias para salvar a alma do pobre “R“.
O Demônio encontra um inimigo à altura…
Assim que conheceu o garoto e atestou sua possessão, o Padre Bowdern decidiu se afastar de suas funções temporariamente para ajudá-lo. No livro de Allen, é dito que o Padre não soube dos ferimentos de Hughes, como uma maneira da família garantir que ele continuasse ajudando, porém algumas fontes da internet dizem que ele não apenas soube como decidira continuar as ações a partir de onde o outro havia terminado. Cada processo do exorcismo, nas seis semanas seguintes, foi mantido em sigilo até o autor de Exorcismo divulgá-lo na obra, incluindo o próprio diário do Padre. Vale a pena conhecer a obra para descobrir como foi realmente a luta entre o Bem e o Mal, e o que aconteceu após as sessões.
O Padre Bowdern tinha algumas dúvidas sobre sua capacidade para salvar o menino, então pediu algumas ajudas como alguns padres e um jovem seminarista, envolvido na batalha sem querer. Durante as três primeiras semanas, o ritual era realizado praticamente todos os dias. E o menino, que anteriormente mantinha uma atitude comum durante o dia e depois passava a agir com violência, começou a agir estranho por mais tempo. Calado, olhar frio. Com o demônio no corpo, ele desafiava os presentes a enfrentá-los, proferindo ofensas pessoais e até fazendo uma premonição sobre o futuro do padre Bowdern – algo que não se concretizou. “R” passou a demonstrar uma força não natural, dificultando que seus braços ficassem presos à cama. Em um dos gestos, apontados no diário, o menino atirou para longe um dos padres durante uma das noites de exorcismo. Há relatos que apontam até que um dos padres chegou a perder a cabeça e usou um travesseiro sobre a cabeça do menino, como se quisesse sufocá-lo.
Durante as tentativas de exorcismo, as mensagens continuaram surgindo pelo corpo do garoto – geralmente em momentos de calmaria, quando ele apresentava uma certa lucidez e retorno de suas ações. Para aliviar a tensão da família, abalada pelas noites insones, Bowdern sugeriu que o menino novamente fosse levado a um lugar privado, no caso um ambiente de reclusão para monges católicos. Ficava numa sala isolada no local, que impedia que as pessoas que estivessem próximas soubessem o que estava acontecendo. Sem janelas que pudessem ser abertas, e a porta que impedia que alguém tentasse sair – possivelmente usado como punição pelos membros -, o pequeno “R” poderia ter toda a ajuda que precisava. Muitos dos monges nem souberam, na época, o que acontecia na sala, mas entendia que a movimentação era por consequência da importância de alguém que ocupava o local.
Aos poucos, a batalha parecia enfraquecer o padre. Sua saúde passou a preocupar os presentes, e àqueles que o acompanhavam em sua vida fora daquele quarto: perdeu muito de seu peso, olheiras eram facilmente notadas em sua face enrugada. Como os exorcismos aconteciam nas madrugadas e ele tinha ocupações logo cedo, parecia que ele estava sempre exausto, entregue. Certa noite, um dos padres teve o nariz quebrado pelo garoto, e o modo como reagiu Bowdern e os demais indicava que o cansaço estava contaminando todos, e já havia quem duvidasse do sucesso do exorcismo. Tiveram, então, a ideia de batizar “R“, crendo que a imersão nos sacramentos pudesse ajudar em sua cura, já que ele estaria mais sujeito ao poder espiritual da Igreja Católica e seus sacerdotes.
A descrição de Allen ao momento em que tentam colocar uma hóstia em sua boca para a realização da primeira comunhão é fascinante. O modo como o garoto agrediu quem se aproximava, e usava unhas e dentes para rasgar a pele de quem tentasse segurá-lo impressiona pela ferocidade da ação. Mas, mesmo com a aceitação do corpo de Cristo, os problemas continuaram com mais intensidade e ameaças.
São Miguel é convocado para a Batalha Final
De acordo com a Crença Católica, Miguel é o Chefe Arcanjo do Céu. Ele é o Anjo a quem Deus deu o poder sobre Satanás, e foi o responsável pelo exílio de Lúcifer. Em qualquer livro sobre exorcismos, incluindo o de Allen, os padres pedem ajuda a São Miguel nas orações por crer que sua força é absoluta e decisiva. Nesse caso, a intervenção de Miguel resultou em algo positivo para a batalha contra o Mal que destruía o menino. Alguns dias depois do exorcismo que acreditavam ter sido o mais fortalecido, a família finalmente voltou para Cottage City e a paz estava de volta, assim como a velha rotina de pessoas normais em seus afazeres.
“R” voltou para a escola e não demonstrou mais nenhuma atitude estranha e que pudesse despertar suspeitas. Ele pediu que seu nome fosse mantido em sigilo assim como suas noites de confrontos agudos. De acordo com a Igreja Católica, essa é uma ação comum das pessoas que foram vítimas de possessão, temendo que sejam vistas de maneira estranha pela sociedade. Mas, também muito do que aconteceu não fazia parte das lembranças do garoto, provando que sua mente e corpo estavam sob o domínio de alguma entidade diabólica.
O livro Exorcismo traz mais detalhes de todas as situações mencionadas acima, assim como as orações proferidas e a batalha final. E ainda acrescenta informações posteriores ao processo, contando o que aconteceu com os envolvidos, com a sala onde foram realizados os exorcismos finais – local que diziam ser assombrado, e requisitado por satanistas, mesmo que alguns não soubessem da verdade – e como William Peter Blatty soube dessa história e resolveu adaptá-la para sua obra. Também fala sobre o clássico O Exorcista, e os fatos curiosos ocorridos durante as filmagens.
Mesmo com os exageros cênicos para os fatos, é bem verdade que muitos padres que realizam exorcismos dizem que o filme não fugiu da rotina daqueles que praticam o ritual. É uma produção indispensável para o gênero, e a responsável pelo modo como o cinema enxergaria o horror a partir dele. E, depois das tentativas frustradas de continuarem a história em sequências e prelúdios inferiores, finalmente O Exorcista encontra sua versão para a televisão em formato série de TV. Parece que o conteúdo irá abordar com mais intensidade o livro original, apresentando alguns dos relatos que você leu acima. Será que precisava explorar ainda mais a possessão do garoto que quase culminou numa tragédia nos idos de 1949?
Sei que passaram epocas, mas o que me deixa entristecido é nunca usarem um garoto na representação das cenas em filmes, seria bem interessante um “documentario” cinematografico e com cenas descritas sendo exibido sobre a historia.